Com o objetivo principal de avançar o conhecimento científico, a maioria dos cientistas não é treinada ou incentivada a pensar nas implicações sociais das tecnologias que estão desenvolvendo. Mesmo na medicina genômica, que é voltada para o benefício de futuros pacientes, as pressões de tempo e financiamento dificultam a supervisão ética em tempo real.
Em 2015, três anos depois que cientistas descobriram como editar permanentemente o genoma humano, pesquisadores dos EUA emitiram uma declaração para interromper a aplicação da edição do genoma da linha germinativa, um tipo controverso de edição de genes em que as alterações no DNA também são transferidas para os futuros descendentes biológicos do paciente. A declaração dos cientistas pedia uma “discussão aberta sobre os méritos e os riscos” antes do início dos experimentos. Mas essas discussões não aconteceram.
Em 2018, pelo menos dois bebês nasceram da edição da linha germinativa com embriões que haviam sido geneticamente modificados na China. Sem uma ética preventiva ou uma orientação regulatória clara, surgem ocasionalmente cientistas “cowboys”, que ultrapassam os limites dos experimentos até serem orientados a parar.
Depois de descobrirem sobre os bebês, os cientistas continuaram a conversar, mas principalmente entre si. Então, em 2020, um relatório de comissão internacional que reuniu opiniões de especialistas fez o mesmo apelo para discussões sociais sobre se a edição de linha germinativa poderia ser ética.
Sou uma antropóloga médica e bioeticista que estuda os valores e as experiências que impulsionam os desenvolvimentos da terapia genética pré-natal, incluindo a edição do genoma.
A edição pré-natal do genoma humano ainda não aconteceu, até onde sabemos. A edição pré-natal do genoma não é o mesmo que editar embriões ex vivo, como fez o cientista chinês, porque a edição pré-natal envolve a edição do DNA de um feto visível dentro do útero de uma pessoa grávida —sem a intenção de afetar futuros descendentes.
Mas as implicações sociais dessa tecnologia ainda são vastas. E os pesquisadores já podem começar a explorar a ética ao envolver as comunidades com bastante antecedência.
Envolvimento das comunidades
Não é possível prever como as tecnologias podem beneficiar a sociedade sem qualquer contribuição das pessoas da sociedade. Os possíveis usuários da tecnologia, em particular, podem ter suas próprias experiências a oferecer. Em 2022, no Reino Unido, um júri de cidadãos composto de pessoas afetadas por doenças genéticas deliberou. Eles votaram que a edição da linha germinativa de embriões humanos poderia ser ética, se uma série de condições específicas fosse atendida, como transparência e igualdade de acesso.
Recentemente, nos Estados Unidos, o National Council on Disability (conselho nacional sobre deficiência) publicou um relatório sobre suas preocupações com a edição embrionária e pré-natal. Sua principal preocupação era com a possibilidade de mais discriminação contra pessoas com deficiência.
Algumas pessoas veem a prevenção do nascimento de pessoas com determinadas características genéticas como uma forma de eugenia, a prática preocupante de tratar as características genéticas de um grupo social como indesejadas e tentar removê-las do pool genético humano. No entanto, as características genéticas são frequentemente associadas à identidade social de uma pessoa —tratar certas características como indesejadas no pool genético humano pode ser profundamente discriminatório.
Perder um bebê devido a uma doença genética grave causa profundo sofrimento às famílias. Porém os mesmos genes que causam doenças também podem criar a identidade humana e a comunidade. Como o Conselho Nacional sobre Deficiência delineou em seu relatório, as pessoas com deficiência podem ter uma boa qualidade de vida quando recebem apoio social suficiente.
Não é fácil envolver não cientistas em discussões sobre genética. E as pessoas têm valores diferentes, o que significa que deliberações comunitárias que funcionam em um contexto podem não funcionar em outro. Mas, pelo que tenho visto, é mais provável que os desenvolvimentos científicos beneficiem os possíveis usuários quando os desenvolvedores da tecnologia consideram as preocupações dos usuários.
Não se trata apenas do feto
A edição pré-natal do genoma humano, também conhecida como cirurgia do genoma fetal, oferece uma chance de abordar os processos de doenças celulares precocemente, talvez até mesmo evitando o aparecimento de sintomas. O fornecimento do tratamento poderia ser mais direto e eficiente do que o que é possível após o nascimento. Por exemplo, a terapia gênica aplicada no cérebro do feto poderia atingir todo o sistema nervoso central.
Mas a edição de um feto envolve necessariamente a pessoa grávida.
Na década de 1980, cientistas conseguiram realizar cirurgias em um feto pela primeira vez. Isso estabeleceu o feto como paciente e destinatário direto dos cuidados de saúde.
Ver o feto como um paciente separado simplifica demais o relacionamento materno-fetal. Fazer isso tem historicamente rebaixado os interesses da pessoa grávida.
E, como a edição do genoma fetal pode prejudicar a futura mãe ou exigir um aborto, qualquer discussão sobre intervenções genéticas pré-natais também se torna uma discussão sobre o acesso ao aborto. A edição dos genes de um feto não se refere apenas à edição desse feto e à prevenção de doenças genéticas.
Edição pré-natal do genoma versus edição de embriões
A edição pré-natal do genoma está inserida no espectro mais amplo da edição do genoma humano, que vai desde a linha germinativa, em que as alterações são hereditárias, até a célula somática, em que os descendentes do paciente não herdarão as alterações. A edição pré-natal do genoma é, em teoria, a edição de células somáticas.
Ainda há um pequeno potencial de edição acidental da linha germinativa. “Editar” um genoma pode ser uma metáfora enganosa. Quando foi desenvolvida pela primeira vez, a edição de genes era menos como cortar e colar genes e mais como enviar um drone que pode acertar ou errar o alvo —um pedaço de DNA. Ela pode alterar o genoma de maneiras intencionais e, às vezes, não intencionais. Com o avanço da tecnologia, a edição de genes está se tornando menos parecida com um drone e mais com o corte de um cirurgião.
Em última análise, os pesquisadores não podem saber se haveria edições colaterais e não intencionais da linha germinativa até décadas no futuro. Isso exigiria a edição de um número significativo de genomas de fetos, a espera pelo nascimento desses fetos e a espera para analisar os genomas de seus futuros descendentes.
Questões de equidade em saúde não resolvidas
Outra questão ética importante tem a ver com quem teria acesso a essas tecnologias. Para distribuir as terapias genômicas pré-natais de forma equitativa, os desenvolvedores de tecnologia e os sistemas de saúde precisariam lidar com questões de custo e confiança.
Veja, por exemplo, novos tratamentos de edição de genes para crianças com doença falciforme. Essa doença afeta principalmente as famílias negras, que continuam a enfrentar disparidades e barreiras significativas no acesso ao atendimento pré-natal e à assistência médica em geral.
A edição do feto em vez do tratamento de uma criança ou adulto poderia reduzir os custos de assistência médica. Como o feto é menor, os profissionais usariam menos materiais de edição de genes, com custos mais baixos. Mais do que isso, o tratamento precoce da doença poderia reduzir os custos que o paciente poderia acumular ao longo da vida.
No entanto, todos os procedimentos de edição de genoma são caros. O tratamento de uma criança de 12 anos com doença falciforme com edição de genes custa atualmente US$ 3,1 milhões. Embora alguns acadêmicos queiram tornar a edição de genes mais acessível, ainda não houve muito progresso.
Há também a questão da confiança. Ouvi famílias de grupos sub-representados na pesquisa genômica dizerem que hesitam em participar de pesquisas de diagnóstico pré-natal se não confiarem na equipe de saúde que está fazendo a pesquisa. Esse tipo de pesquisa é o primeiro passo para a criação de modelos para tratamentos como a edição pré-natal do genoma. Além disso, essas famílias sub-representadas tendem a ter menos confiança no sistema de saúde em geral.
Embora a edição pré-natal de genes tenha um imenso potencial para descobertas científicas, os cientistas e desenvolvedores poderiam convidar os possíveis usuários —as pessoas que mais ganham ou perdem com essa tecnologia— para a mesa de tomada de decisões, a fim de ter uma visão mais clara de como essas tecnologias podem afetar a sociedade.
Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons. Clique aqui para ler a versão original