Anticoncepcionais, planejamento familiar e empoderamento feminino são palavras comuns no vocabulário de 2024 —e a sensação é de que elas sempre estiveram presentes. Mas foi apenas em 1994 que esses conceitos entraram de vez na esfera política internacional em um documento, ratificado por 179 países, que reconheceu os direitos reprodutivos como direitos humanos.
A Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, reunião das ONU (Organização das Nações Unidas) que aconteceu no Egito, marcou uma virada nas políticas públicas globais relacionadas a temas como mortalidade materna, prevenção do HIV e planejamento familiar.
Trinta anos depois, o plano de ação estabelecido na conferência continua sendo um marco para a atuação internacional, mas ativistas e pesquisadoras apontam que a inconstância política e a ascensão de movimentos conservadores são entraves para a implementação das metas estabelecidas.
“As mulheres brasileiras chegaram no Egito com um desejo muito claro”, conta a médica sanitarista Santinha Tavares, da Rede Feminista de Saúde. O principal desejo era o de mudar o foco das políticas de população para longe das medidas de controle populacional.
“Era uma briga que a gente vinha travando havia muito tempo no Brasil, de que o discurso de controle de natalidade era o controle da mulher pobre e da mulher negra”, afirma Tavares.
Era uma briga que a gente vinha travando havia muito tempo no Brasil, de que o discurso de controle de natalidade era o controle da mulher pobre e da mulher negra
Durante a segunda metade do século 20, o consenso de que havia um crescimento populacional desenfreado dava o tom da atuação de governos e órgãos internacionais em políticas de reprodução.
Críticos à ideia da “bomba populacional”, como os movimentos feministas, colocam que o controle de natalidade estimula uma visão eugenista da reprodução, privilegiando algumas famílias (e países) em detrimento de outros.
No Cairo, pela primeira vez, a ideia de que a quantidade de filhos deve ser regulada dentro da própria família apareceu no documento do plano de ação. “Isso foi um grande avanço”, diz a médica, que participou da elaboração de políticas de saúde para mulheres no Brasil nos anos 1980 e 1990.
Ela aponta, por exemplo, uma evolução na implementação de programas de planejamento familiar no país nas últimas décadas. “A forma de atendimento da mulher com respeito, explicando e oferecendo o contraceptivo que é mais adequado para ela, melhorou muito de lá para cá.”
Neste ano, a ONU listou mudanças que ocorreram desde a publicação do plano de ação, incluindo uma queda de 34% de mortalidade materna global, o dobro de uso de contraceptivos por mulheres e redução da mortalidade infantil pela metade.
Mas como mensurar o impacto de uma conferência como a do Cairo nas ações feitas na ponta? Em setembro de 1994, após a publicação do plano de ação, a Folha colocava a ponderação em editorial. “É evidente, contudo, que os avanços obtidos resumem-se por enquanto a intenções. Resta esperar que os países participantes dessa conferência transformem o plano de ação, efetivamente, em ações”, afirmava o texto. “Que o documento do Cairo não se torne apenas mais um pedaço de papel, como tantos outros.”
Para Wendy Sigle, professora de estudos da família da LSE (London School of Economics and Political Science), planos de ação como o formulado no Egito há 30 anos têm potencial de estruturar as prioridades políticas e ajudar a desenvolver uma agenda de financiamento. “Elas criam um entendimento internacional sobre qual deve ser a direção da agenda”, afirma.
No entanto, o UNFPA, o fundo de população da ONU, é preciso aumentar financiamento ligado às áreas do plano de ação. A organização estima que US$ 79 bilhões investidos em planejamento familiar entre 2022 e 2030 poderiam evitar cerca de 400 milhões de gravidezes indesejadas, por exemplo, e reduzir a mortalidade materna de 1 milhão de mulheres.
No Brasil, uma consequência do plano de ação foi a criação da CNPD (Comissão Nacional de População e Desenvolvimento), em 1995. O objetivo do órgão era o de orientar o governo federal na implementação da agenda do Cairo e produzir subsídios técnicos para temas como fertilidade, mortalidade e migração —que compõem os estudos de população.
“Mas a atuação da comissão foi marcada pela instabilidade e desvalorizada ao longo dos anos” afirma Richarlls Martins, atual presidente do colegiado. A CNPD chegou a ser extinta durante o governo Jair Bolsonaro, e foi reativada recentemente, em 2024, pela gestão Lula.
A comissão pretende retomar o monitoramento e a formulação de políticas de direitos reprodutivos, afirma Martins, trazendo atores que não estavam presentes nas discussões dos anos 1990. “É a primeira vez que temos, por exemplo, representação da população em situação de rua nos assentos”, explica.
Além disso, afirma ele, o discurso do controle populacional por meios coercitivos não desapareceu. “A gente ainda vê muito essas falas de que as mulheres têm filhos para conseguir mais benefícios do governo”, diz ele, que afirma que a nova gestão da comissão tem como um dos objetivos aumentar a comunicação sobre temas de direitos reprodutivos.
“Acho que também podemos medir o sucesso político da agenda do Cairo pela reação conservadora que se criou a ela”, afirma Sonia Corrêa, co-diretora da organização Sexuality Policy Watch.
Acho que também podemos medir o sucesso político da agenda do Cairo pela reação conservadora que se criou a ela
Na reunião de 1994, um grupo de países e organizações liderados pelo Vaticano se opôs a partes fundamentais do texto, como a ênfase no acesso universal a contraceptivos.
Sigle, da LSE, também enxerga uma onda conservadora que se formou a partir de conexões estabelecidas na conferência de população no Egito. “Nos últimos 30 anos nós estivemos basicamente lutando contra o ‘backlash’ que foi gerado depois dessa vitória feminista”, afirma.
A aliança conservadora saiu derrotada, mas manteve uma atuação consistente e crescente nas cúpulas internacionais. Em 2012, na conferência do Rio+20 (referência à Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, em 1992), o grupo conseguiu excluir menção a direitos sexuais e reprodutivos do documento final. “Nos últimos dez anos, nós nunca mais conseguimos estabelecer um consenso e avançar nas políticas”, diz Corrêa.
A pesquisadora critica o texto aprovado neste ano na Comissão de População e Desenvolvimento da ONU, em maio deste ano. O documento reafirma os compromissos assumidos em 1994 como os pilares da agenda de população e desenvolvimento mas, segundo Corrêa “não avança em nada”. “Tem zero conteúdo, não usa as palavras gênero, saúde reprodutiva, nada”, afirma.
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