A recente inclusão da Doença Falciforme (DF) na lista do Sistema Nacional de Notificação Compulsória de Doenças, Agravos e Eventos de Saúde Pública (SINAN), conforme estabelecido pela Portaria n. 2.010 de 2023, representa um avanço na luta pela saúde da população afrodescendente no Brasil. Essa medida não apenas visa melhorar a coleta de dados sobre a doença no território nacional, mas também é um passo crucial para a construção de políticas públicas mais eficazes e que atendam às necessidades de uma população historicamente marginalizada. Além disso, neste domingo, 27 de outubro, temos o Dia Nacional de Luta pelos Direitos das Pessoas com Doenças Falciformes, uma oportunidade valiosa para fortalecer e ampliar o debate sobre a DF e reafirmar o compromisso com a construção de políticas públicas que promovam a saúde e o bem-estar da população negra no Brasil.
A integração da DF na lista de agravos de notificação compulsória é resultado de uma reivindicação histórica dos movimentos sociais negros que atuam na área da saúde no combate ao racismo institucional e de organizações da sociedade civil representativas das pessoas com DF. É importante salientar a negligência histórica relacionada à DF no Brasil, considerando o marco do seu primeiro relato científico, em 1910, até a primeira política pública, em 2005. Mesmo com o diagnóstico por meio da triagem neonatal (teste do pezinho), estabelecida em 2001 pela Portaria Ministerial n. 822, ainda existem casos de diagnóstico tardio, o que, aliado às fragilidades no registro dos dados relativos à DF, intensifica a invisibilidade das pessoas com DF no sistema de saúde e reflete o racismo institucional.
Em 2005, a Portaria Ministerial n. 1.391, instituiu no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias (PNAIPDF). No seu artigo 1º, inciso 1 tem-se que:
“a promoção da garantia do seguimento das pessoas diagnosticadas com hemoglobinopatias pelo Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), recebendo os pacientes e integrando-os na rede de assistência do Sistema Único de Saúde – SUS a partir, prioritariamente, da Hemorrede Pública, e provendo assistência às pessoas com diagnóstico tardio de Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias, com a criação de um cadastro nacional de doentes falciformes e outras hemoglobinopatias;”
A notificação compulsória da DF mostra-se, então, como fundamental por várias razões. Em primeiro lugar, a coleta sistemática de dados permitirá uma melhor compreensão da prevalência e da gravidade da doença em diferentes regiões do país. No cenário epidemiológico atual, estima-se que entre 25.000 e 50.000 pessoas vivem com a condição, e a incidência é particularmente alta em estados como Bahia e Rio de Janeiro. Por isso, com a existência e a coleta de dados cada vez mais precisa, será possível identificar áreas de maior necessidade e direcionar recursos de maneira mais eficaz, além de contribuir para o melhor planejamento de políticas públicas. Em 2023, por exemplo, a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre publicou diretrizes sobre a linha de cuidado e o fluxo de atendimento para pessoas com DF. O mesmo documento também ressalta que as ações práticas e prioritárias foram integradas à Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN).
Além disso, a notificação compulsória pode ajudar a combater o estigma associado à doença, pois a DF, sendo uma condição genética que afeta predominantemente a população negra, muitas vezes é cercada de preconceitos e desinformação. Ao tornar a doença parte do sistema de vigilância ativa em saúde, promovemos uma maior conscientização sobre a condição, o que pode contribuir para a redução da discriminação e para a promoção do diagnóstico precoce e do tratamento adequado. Isso inclui a implementação de programas de triagem neonatal, campanhas de educação em saúde e protocolos de atendimento específicos para as pessoas com DF.
Internações por DF cresceram 47,8% no Brasil entre 2012 e 2023, mostra pesquisa
Publicado recentemente, o Boletim Çarê-IEPS n. 5, elaborado pela Cátedra Çarê-IEPS, uma uma iniciativa do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e do Instituto Çarê, analisou as internações e mortalidade por DF entre 2012 e 2023. O estudo baseou-se em dados do Sistema de Informações Hospitalares (SIH) e do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), abrangendo registros de morbidade e mortalidade de acordo com a Classificação Internacional de Doenças (CID-10). Dados como esses, poderão ser ainda mais qualificados a partir da notificação compulsória.
O Boletim identificou que foram registradas 143.412 internações e 5.632 óbitos relacionados à DF, com um aumento de 47,8% nas internações no período analisado pela pesquisa. A análise revela que a população negra é desproporcionalmente afetada pela doença, sendo responsável por 74,7% das internações com identificação racial, com taxas de internação mais elevadas entre crianças de 0 a 4 anos e uma prevalência maior de internações entre pessoas pretas do sexo masculino na faixa etária de 20 a 34 anos. A maioria das internações foi de média complexidade. A notificação compulsória da DF é um passo essencial para a construção de um sistema de saúde mais justo e inclusivo no Brasil. Com a coleta de dados, podemos não apenas entender melhor a doença, mas também desenvolver políticas públicas que atendam efetivamente às necessidades da população afetada. É imperativo que especialistas em saúde pública se unam nessa causa, promovendo a conscientização e a implementação de medidas que garantam um futuro mais saudável para todos os brasileiros, especialmente aqueles que vivem com a DF.
Quanto à mortalidade, a DF foi a segunda causa de óbitos entre as doenças de notificação compulsória de interesse nacional, com uma média de 469 mortes anuais. A taxa de mortalidade na população negra foi cerca de 3,7 vezes maior do que na população branca. De acordo com os dados do Boletim Çarê-IEPS n. 5, a média de idade do óbito por DF para a população branca é de 35,4 anos, enquanto para a população negra é de 32,1 anos. Essa diferença é mais acentuada em anos específicos, como em 2019, quando a idade média de falecimento para pessoas brancas foi de 39 anos, em comparação com 32 anos para pessoas negras. Esses dados refletem desigualdades no acesso aos cuidados de saúde e outros fatores sociais que impactam a longevidade das populações afetadas pela DF.
A notificação compulsória da DF é um passo essencial para a construção de um sistema de saúde mais justo e inclusivo no Brasil. Com a coleta de dados, podemos não apenas entender melhor a doença, mas também desenvolver políticas públicas que atendam efetivamente às necessidades da população afetada. É imperativo que especialistas em saúde pública se unam nessa causa, promovendo a conscientização e a implementação de medidas que garantam um futuro mais saudável para todos os brasileiros, especialmente aqueles que vivem com a DF.
Manuel Mahoche é doutorando em Epidemiologia na USP e estagiário na Cátedra Çarê-IEPS; Altair Lira é Coordenador da área científica saúde da população negra da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN); e Rony Coelho é pesquisador da Cátedra Çarê-IEPS
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