“Apostas não são um tipo de lazer; podem fazer mal à saúde e viciar. Os danos associados às apostas são amplos, afetando não apenas a saúde e o bem-estar de uma pessoa, mas também suas finanças, relações pessoais, famílias e comunidades, com consequências para a vida toda e aumentando a desigualdade.”
“Governos e legisladores precisam tratar as apostas como questão de saúde pública, como já se faz com outros produtos que viciam e fazem mal, como álcool e tabaco.”
A lista de conclusões e recomendações é longa. Em artigo de 45 páginas publicado nesta semana, a revista científica Nature mostra um quadro de risco crescente à saúde pública mundial provocado pelo advento de bets, apostas esportivas e cassinos digitais.
Segundo a publicação, que montou um time de especialistas para investigar o problema, “negligenciado e pouco estudado”, cerca de 46,2% dos adultos do planeta e 17,9% dos adolescentes fizeram alguma aposta no ano passado. A extrapolação dos dados leva a um universo de 450 milhões de pessoas apostando e 80 milhões apresentando algum tipo de distúrbio relacionado à prática.
A análise de metadados da investigação, uma iniciativa da própria revista, mostra que, entre apostadores de cassinos online, 15,8 % dos adultos e 26,4% dos adolescentes apresentaram alguma modalidade de distúrbio relacionada à compulsão ao jogo; no caso das apostas esportivas, foram 8,9% dos adultos e 16,3% dos adolescentes.
A “paisagem epidemiológica”, como descrito pela publicação, muda constantemente. Apostas atingem cada vez mais mulheres e crianças pela simples razão de que aplicativos e sites de apostas são desenhados para viciá-las; e, no caso dos menores, ficam evidentes as falhas na fiscalização do acesso.
“O setor de apostas promove seus produtos e protege seus interesses com práticas desenhadas para influenciar não apenas o comportamento do consumidor, mas a narrativa e o processo político em torno da regulação”, escreve a revista em editorial. Como no caso da indústria do cigarro, que por décadas combateu legislações restritivas ao consumo e à publicidade de seus produtos, o argumento principal é o de que o direito individual não deveria ser tolhido por uma política abrangente.
“Nada disso é novidade, mas em um mundo digitalizado, interconectado e sem fronteiras como o atual, tal estratégia é uma ameaça crescente à saúde pública.”
O relatório da Nature é minucioso ao demonstrar que a indústria de apostas não tem um produto comparável a qualquer outro negócio. Não há, por exemplo, limite físico, que interrompa o consumo, como comida, álcool e cigarro. A oferta online é 24 horas por dia, sendo o único limite a quantidade de dinheiro que o apostador consegue empenhar.
Outro aspecto destacado pela revista é a falta de um preço definido, pois uma sessão de aposta tem uma estrutura opaca de custo e probabilidades. “Esta incerteza separa o jogo de qualquer outro tipo de produto”, explica o relatório, que lembra ainda dos designs imersivos de certos aplicativos, em que o apostador é levado a perder a noção do tempo e da quantidade de dinheiro que está empenhando.
A Nature também comenta sobre a assimetria de transparência que existe na relação de consumo. Enquanto sites absorvem todo tipo de informação, ajustam algoritmos e marketing, os usuários não têm noção de nada, nem do básico, como o preço.
Além da análise, o painel montado pela revista faz diversas recomendações, que contrastam com a realidade de muitos países, incluindo o Brasil, em relação a apostas.
São elas:
1. Apostas são um problema de saúde pública, e governos devem priorizar seu controle a despeito de motivações fiscais;
2. A regulação em todos países, seja o jogo permitido ou não neles, deve reduzir a população exposta ao problema, com proibição ou restrição de marketing, publicidade e patrocínios; oferecer apoio a vítimas do vício; desnaturalizar a prática da aposta, com campanhas de conscientização;
3. Países que permitem o jogo precisam de um regulador independente e empoderado, que garanta proteção à saúde pública, a crianças e adolescentes, consumidores e implemente limites financeiros aos apostadores;
4. Reguladores e legisladores precisam estar protegidos da influência da indústria de aposta e de estudos ou tratamentos patrocinados por ela;
5. Entidades intergovernamentais e da ONU devem desenvolver estratégias para combater os efeitos danosas das apostas em nível internacional;
6. Envolvimento da sociedade civil, acadêmicos e vítimas de distúrbios relacionados a apostas em uma aliança internacional contra o problema;
7. Análise em assembleia de uma resolução da Organização Mundial da Saúde que dê a dimensão devida à questão de saúde provocada pelas apostas.