Achei que o dia em que meus compatriotas estadunidenses escolheram reinstaurar o rei Trump no poder seria perfeito para assistir ao filme “Idiocracia”, de 2006. O filme foi escrito por Mike Judge e Etan Cohen para ser uma sátira sobre um futuro da humanidade onde o raciocínio é coisa do passado, a linguagem deteriorou por falta de ideias, e o trabalho é limitado a apertar botões porque as máquinas fazem todo o resto. As pessoas, identificadas aonde quer que vão por um código de barras tatuado no pulso, vivem em poltronas-latrinas, grudadas em telas que exibem entretenimento violento e infantiloide lado a lado com as logomarcas dos patrocinadores.
Há lixo por todo lado, montanhas dele, e a comida é uma pasta artificial que os cidadãos consomem por um tubo sem tirar os olhos de suas telas, porque a agricultura padece desde que a corporação que comprou o equivalente do ministério da saúde e monopoliza o comércio de alimentos trocou a água por seu produto colorido. A tentativa do personagem principal de recuperar a agricultura usando água em vez do líquido colorido sai pela culatra porque a tal corporação vê suas ações despencarem e despede metade da população, que vai às ruas em protesto.
Era para ser sátira, mas é assustador como em menos de 20 anos o filme hoje está mais para uma premonição.
Já vivemos grudados em telas. É comum até andarmos na rua olhando para elas. São telas que podem trazer conhecimento, mas são programadas para nos fazer ficar olhando para adolescentes maquiadas e gatinhos fantasiados.
Nos últimos dois anos, descobrimos que podemos usar aqueles 16 bilhões de neurônios corticais que ninguém mais tem para criar algoritmos que, por tentativa e erro, aprendem não só a falar como nós, mas também a resolver problemas como nós. As maiores empresas de tecnologia agora correm para ver quem desenvolve primeiro o algoritmo que vai tornar obsoleto todo esforço cognitivo humano. Muito em breve, se continuarmos no caminho em que estamos, o maior feito da humanidade terá sido substituir a si mesma por algoritmos que automatizam a sua existência.
A esperança é que, ao contrário do que o filme “Idiocracia” propõe, as habilidades humanas podem regredir, mas as capacidades biológicas em princípio permanecem. A premissa do filme é que a humanidade emburrece em 500 anos porque somente os idiotas, aqueles sem instrução e cultura, se reproduzem feito coelhos, enquanto os instruídos atrasam tanto produzirem filhos que acabam morrendo sem nenhum. É a mesma premissa abraçada por aqueles que, como o Elon Bobo-da-corte Musk, defendem que os mais inteligentes precisam ter muitos filhos para “salvar a humanidade”.
Mas não, a perpetuação das habilidades cognitivas humanas, e tampouco de suas capacidades, não depende da reprodução dos “mais inteligentes”. Inteligência, a capacidade de ser flexível em pensamentos e ações, se aprende, se desenvolve e se cultiva com oportunidades de instrução. Pessoas instruídas tendem a gerar filhos instruídos porque suas oportunidades são transmissíveis. A humanidade inteligente é a humanidade instruída, e, salvos os idiotas por opção ou convicção, o que torna uma pessoa pouco instruída não é uma falha de biologia: é falta de oportunidade. Resta saber se um dia iremos escolher dar essas oportunidades a todos…
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