O apelo do papa Francisco no último domingo (21) por um diálogo aberto e sincero na Nicarágua pouco serviu para acalmar os ânimos no mais recente cerco da ditadura de Daniel Ortega contra a Igreja Católica. Dois dias antes, na madrugada de sexta (19), o regime prendeu o bispo de Matagalpa, Rolando Álvarez, e outras sete pessoas —quatro sacerdotes, dois seminaristas e um funcionário da diocese.
“As palavras de Francisco foram vagas e ambíguas, insuficientes para pressionar pela libertação dos detidos”, avalia à Folha o jornalista Carlos Fernando Chamorro. “Ele pede diálogo; como pode haver diálogo sem liberdade e democracia, com pessoas injustamente privadas de liberdade?”
Filho da ex-presidente Violeta Chamorro, Carlos tem dois irmãos também presos —uma delas a ex-candidata à Presidência Cristiana Chamorro. Ele edita seu jornal, El Confidencial, na Costa Rica, onde se exilou, assim como boa parte dos profissionais de imprensa e opositores perseguidos. Nesta terça (23), o escritório de La Prensa foi tomado pelo regime para ser “convertido em centro cultural”, dias após o veículo retirar seus profissionais do país.
“Depois de prender opositores, obrigar os demais a sair do país e levar jornais a encerrar atividades ou se exilar, Ortega agora mira os religiosos, os que atendem a população de modo mais direto.”
Segundo o Observatório Pró-Transparência e Anticorrupção, entre abril de 2018 e maio de 2022 houve ao menos 190 agressões contra a Igreja Católica na Nicarágua.
Rolando Álvarez e os demais religiosos detidos na última semana estão em El Chipote, penitenciária onde se encontram outros presos políticos. As autoridades começaram uma negociação, com intermediação do cardeal Leopoldo Brenes, arcebispo de Manágua e aliado de Ortega, para que eles aceitem sair do país.
Para o ex-ministro da Educação Humberto Belli, o movimento não é apropriado. “Ninguém pode ser pressionado a deixar o país, principalmente sem ter sido condenado por crime algum. A única negociação possível é para que eles sejam liberados.”
Martha Patricia Molina, autora de uma pesquisa sobre os ataques da ditadura de Ortega à Igreja, vê a tentativa de usar um religioso aliado como algo ilegal. “Isso deveria ter uma resposta à altura da Conferência Episcopal da Nicarágua”, afirma. Não seria a primeira intervenção do Vaticano em questões envolvendo cercos de Ortega. Em 2019, Francisco pediu a libertação do então bispo auxiliar de Manágua, Silvio José Báez, que atuara na mediação de manifestantes com o regime e acabou acusado de tramar um golpe —ele hoje está no exílio.
Segundo a polícia, Álvarez e os demais religiosos são acusados de organizar grupos violentos, fomentar o ódio e realizar atividades desestabilizadoras e provocadoras. Desde os protestos de 2018, quando milhares de pessoas saíram às ruas para se manifestar contra Ortega, membros da Igreja Católica passaram a estar na mira do regime, por terem ajudado e dado refúgio a jovens que participaram dos protestos. Na repressão, mais de 300 pessoas foram assassinadas.
O racha atual marca mais um capítulo de uma relação histórica de colaboração e fricções que começou com a Revolução Sandinista, em 1979. Num primeiro momento, lideranças da Igreja se associaram ao sandinismo, em oposição à ditadura do clã Somoza, que governava desde 1937. Entre eles, se destacavam padres vinculados à Teologia da Libertação, que então desagradava ao Vaticano.
Tal era a proximidade que, na primeira junta de governo após o fim do regime, havia quatro sacerdotes, entre eles o poeta Ernesto Cardenal. Ortega integrava o grupo, assim como Violeta Chamorro e outros que depois passariam à oposição ao ditador.
Com a dissolução da junta, o apoio dos religiosos ao hoje líder do regime se dividiu, com direito a críticos muito contundentes ao regime, como Miguel Obando y Bravo, que foi arcebispo de Manágua e morreu em 2018. A cisão entre sacerdotes tradicionais e os ligados à Teologia da Libertação também continuou e, em 1983, quando esteve na Nicarágua, o então papa João Paulo 2º advertiu publicamente Cardenal por seu vínculo com o grupo.
Ortega, que na época de revolucionário era ligado a esse grupo mais progressista, nos últimos tempos tentou uma reaproximação com o setor mais conservador, mas nunca conseguiu uma adesão em bloco.
A mais recente onda de perseguição começou em março, com a expulsão do país de líderes estrangeiros como o núncio apostólico polonês Waldemar Sommertag e um grupo de missionárias da ordem da Madre Teresa de Calcutá, acusadas de serem terroristas.
Depois vieram a suspensão de rádios católicas, relatos de bombas em templos e prisão de sacerdotes. Houve, ainda, o fechamento de igrejas, obrigando padres a oferecerem a eucaristia por detrás das grades ou pela janela.
O cerco às instituições promovido pela ditadura de Ortega é repudiado por outras nações e organismos internacionais. Na atual eleição brasileira, o país foi citado por Jair Bolsonaro (PL) e Ciro Gomes (PDT) como forma de atingir Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —alas do partido mantêm certo nível de proximidade com o regime de Manágua.
Sobre situação envolvendo os religiosos, António Guterres, secretário-geral da ONU, afirmou que a prisão de Álvarez é uma “grave obstrução do espaço democrático e cívico na Nicarágua”. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos também condenou a “escalada da repressão contra integrantes da igreja” e pediu a libertação de outros dois religiosos, Uriel Vallejos e Óscar Danilo Benavidez.