Se política externa está longe de ser central nos planos de governo dos presidenciáveis, à África é relegado um espaço ainda mais marginal. Dos cinco candidatos com maior intenção de voto, só um propõe algo para o continente de 1,2 bilhão de habitantes. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) o faz de forma curta: “Reconstruiremos a cooperação internacional Sul-Sul com América Latina e África”.
O refluxo nas relações coloca o Brasil na retaguarda em um momento em que todos os grandes blocos olham para África como parte da solução para desafios geopolíticos, diz o guineense Carlos Lopes, ex-embaixador da ONU no Brasil e ex-secretário-executivo da Comissão Econômica para África.
Pensar uma política externa para o continente, no entanto, exige o rompimento com estereótipos e uma análise mais profunda sobre a região, acrescenta o professor na Universidade da Cidade do Cabo.
Ele falou à Folha por videochamada uma semana após voltar de uma viagem ao Brasil, quando esteve no Pará e em São Paulo. Embarcou para casa frustrado: “Com raras exceções, havia um desconhecimento extraordinário sobre a situação econômica na África”.
Como saiu da visita ao Brasil? Fiquei com a impressão de que a pauta africana recuou muito nas preocupações de todos. A África aparece associada mais à questão identitária do que à oportunidade de relacionamento econômico. No próprio PT, sempre existiu essa predominância identitária, mas acho que agora há mais.
Isso cria algumas dificuldades, porque a questão identitária no Brasil é um problema que leva a uma visão da África muito abstrata e distante da realidade. Falei com pessoas no Itamaraty, e a impressão que fica é que pensam que se resolve o problema de relacionamento com África dando mais peso à negritude e a questões de diversidade.
Do lado africano, acho que isso não tem importância nenhuma. Africanos estão mais interessados em saber qual é a posição do Brasil em relação ao Brics, em matéria comercial, se vamos fazer alianças para defender interesses comuns. É uma agenda muito mais pragmática. Com raras exceções, havia um desconhecimento extraordinário sobre a situação econômica na África. Parece que parou tudo no tempo.
África quase não aparece nos planos de governo. Qual acha que deveria ser a política externa brasileira para o continente? Estamos em um período geopolítico muito particular, em que fica explícito que vamos ter a renovação das regras multilaterais. E praticamente todos os elementos só terão solução a longo prazo com a participação da África.
Na questão da propriedade intelectual, vai haver uma batalha em que parte da resposta não é só a inovação, mas também o consumo, e a África vai ter uma situação singular de um em cada dois nascimentos a partir de 2040; os jovens africanos são indispensáveis como consumidores de tecnologia.
Na transição energética não há solução fácil sem hidrogênio verde, e a Agência Internacional de Energia diz que 60% desse potencial está na África. O Brasil deveria estar mais atento a essas coisas, como estão todos os outros do mundo.
Líderes mundiais fizeram giros pela África nas últimas semanas —o francês Emmanuel Macron, o americano Antony Blinken e o russo Serguei Lavrov. Há uma nova corrida pelo continente? Todas essas visitas estão preocupadas com a energia. Russos estão interessados em estar nos teatros africanos para evitar perder influência em países ligados às transições energética e tecnológica.
Eles competem com os países do Golfo, sempre conectados com alguma forma de jihadismo. Não podemos ser ingênuos.
Em que medida o terrorismo trava o desenvolvimento regional? Tem um peso muito grande. Há aqui a camuflagem de um problema maior: interessar a certos atores uma certa instabilidade do continente africano, por razões competitivas ou de geopolítica. Todos os países ocidentais presentes nas mediações e forças de paz têm muita inteligência militar que não partilham com os países que são supostamente ajudados. Então toda a gente sabe um bocado da verdade, mas os países que sofrem com o jihadismo não sabem nenhuma.
África foi e é recorrentemente vista como um lugar de frágil democracia e autoritarismo. Nos últimos anos pilares da democracia, como EUA, mostraram que o ímpeto golpista bate à porta. No Brasil também. O que temos a aprender? O primeiro é que, sem instituições fortes, a judicialização da política não é resposta ao autoritarismo. Temos exemplos onde as instituições são fortes e é possível travar o populismo e o autoritarismo, como no Quênia —sempre há eleições tensas, mas no final as coisas entram nos eixos.
A segunda lição é que estamos todos sujeitos à manipulação dos processos eleitorais. Quanto mais populismo houver, mais tendência há para mexer na integridade dos processos eleitorais. Terceiro, o uso das redes digitais; é mais fácil manipular as populações vulneráveis do que as mais formadas.
O Brasil deve olhar para África focando os lusófonos? A língua ainda tem alguma vantagem, mas limitada. Vários blocos comerciais estão sendo redesenhados, porque vai haver uma espécie de neoprotecionismo baseado no clima e na segurança. Os blocos terão de redefinir suas regras do jogo, e os países de língua portuguesa poderiam se beneficiar se estivessem organizados.
Temos um país como o Brasil que é uma potência incrível a nível ambiental. Dos outros lusófonos, cada um está em uma zona do globo que tem importância nas negociações. Se houvesse uma liderança do Brasil, poderia haver um papel significativo sobre o redesenho do comércio e sobre criar vantagens entre si. A ideia mais emocional de estarmos interconectados porque temos uma história em comum não tem nada de errado, mas economicamente perdeu importância.
Há quem deposite em alguma figura política, como o ex-presidente Lula, a esperança de um possível reativamento da comunidade. O sr. concorda? A CPLP vive de expectativa, mas nenhuma instituição pode ser consolidada na base da expectativa. Nunca conseguiu alcançar uma clarificação do seu objetivo. Sempre disse que queria ser uma plataforma de coordenação político-diplomática, mas é evidente que não atua dessa forma. O segundo objetivo proclamado é de que sirva para fortalecer a cooperação entre os países, mas não parece ser o caso. As batalhas que a CPLP escolhe são perdidas, como introduzir o português na ONU.
O senhor disse, em entrevista recente, que a crise alimentar na África também está fundamentada em problemas de logística, produção e distribuição. O Brasil teria um papel a assumir? A agricultura africana tem a produtividade mais baixa do planeta por três razões fundamentais: baixa capacidade logística, grande perda de produção e utilização de métodos agrícolas ultrapassados. Não posso imaginar um país que tem mais capacidade nesses domínios, com características ecológicas muito parecidas com as nossas, que o Brasil.
É difícil de imaginar como frigoríficos brasileiros não estejam presentes na África para fazer o processamento da carne para exportação para os países do Golfo. África está a exportar quantidades enormes de carne com o animal vivo. É uma oportunidade extraordinária.
Mas cabe uma crítica à atuação do tempo dos presidentes Lula e Dilma. Eles identificaram muito cedo que a Embrapa era um instrumento fundamental para a cooperação, mas nunca deram os meios. O Brasil nunca colocou dinheiro na Embrapa para se instalar e poder fazer proliferar seu conhecimento cientifico na África para beneficiar em escala a transformação da agricultura africana.
Raio-X | Carlos Lopes
Professor na Universidade da Cidade do Cabo e professor convidado na Sciences Po, em Paris, liderou a Comissão Econômica para a África e foi embaixador da ONU no Brasil. Escreveu, entre outros, “África em Transformação” (2020) e “Mudança Estrutural em África” (2022), ambos publicados pela editora Tinta da China.