O governo de Nayib Bukele tem cometido violações generalizadas de direitos humanos em El Salvador desde que adotou, em março, um regime de exceção para conter uma onda de violência de gangues e narcotraficantes. A conclusão integra relatório da ONG Human Rights Watch, feito em parceria com a ONG salvadorenha Cristosal, lançado nesta quarta-feira (7).
O documento, sob o título “Podemos deter quem quisermos”, frase tirada de um discurso de Bukele, aponta que desde o início do estado de emergência já foram realizadas centenas de operações, resultando em mais de 58 mil prisões, incluindo as de 1.600 menores de idade.
Entre as violações de direitos humanos, o texto ressalta detenções arbitrárias maciças, torturas, desaparecimentos forçados, mortes sob custódia policial e processos penais abusivos. O fenômeno, diz o texto, é fruto direto do “desmantelamento do sistema judicial, hoje dependente do Executivo, realizado desde que Bukele chegou ao poder”, em 2019.
“As forças de segurança salvadorenhas cometeram violações generalizadas de direitos humanos em comunidades vulneráveis com o suposto objetivo de garantir sua segurança”, afirma Juanita Goebertus, diretora de Américas da HRW. “Para colocar um fim a grupos criminosos e a abusos, o governo deveria substituir o regime de exceção por uma política de segurança eficaz e respeitosa dos direitos humanos, que garanta aos salvadorenhos a segurança que tanto merecem.”
Realizado entre março e novembro, o levantamento que embasou o relatório ouviu mais de 1.100 pessoas em 14 departamentos do país, incluindo vítimas, familiares, advogados, testemunhas e funcionários do próprio Estado. Ao examinar documentos jurídicos e médicos, os pesquisadores concluíram que policiais e soldados cometeram abusos parecidos e de modo repetitivo, em todo o país.
Registraram, também, que, em seus discursos, Bukele expressa total apoio às prisões e incentiva abusos. Os agentes teriam, inclusive, uma meta de vítimas para prender e maltratar por dia. Juízes, por sua vez, seriam alvos de pressão para que não investigassem esses relatos.
A análise de casos levou às ONGs a concluir que muitos dos detidos não têm ligação com atividades criminosas, mas foram considerados suspeitos por viver nesses bairros vulneráveis onde as operações se concentram.
Nas penitenciárias, que não têm capacidade para a quantidade de presos que se acumula a cada dia, relatos indicam que não é possível conversar nem rezar; quem desrespeitar as ordens é alvo de repressão com, por exemplo, lançamento de gás lacrimogêneo.
Familiares reclamam que a prática do governo de mudar os detidos de prisão ou cela, para evitar que tenham contato próximo com outros suspeitos, faz com que muitos não saibam onde estão seus parentes. Para a HRW, a medida representa um desaparecimento forçado, segundo o direito internacional.
O documento dedica uma seção à maneira, considerada irregular, com que têm sido realizados julgamentos. A mais comum é a de audiências coletivas, que chegam a julgar 500 detidos de uma vez.
A população carcerária salvadorenha aumentou de 39 mil pessoas em março deste ano para 95 mil em novembro. No mesmo período, morreram 90 pessoas sob custódia do Estado.
O estado de emergência foi inicialmente decretado em 27 de março, em resposta a uma escalada de violência que terminou com 87 assassinatos em um fim de semana. Ele permite, entre outras coisas, prisões sem mandado judicial, limitações a reuniões e restrições a telecomunicações, e desde então vem sendo estendido pelo Congresso unicameral; na última vez, os parlamentares prorrogaram a medida até meados deste mês.
No final de novembro, Bukele anunciou a quinta fase de um plano de segurança do governo, batizado de Controle Territorial, dentro desse regime de exceção. A medida prevê uma espécie de cordão de segurança em diferentes cidades, formado por policiais e militares, de forma a cercar e prender membros de gangues.
As duas ONGs apontam que essas medidas não vêm funcionando no combate às gangues, que começaram a se disseminar justamente no ambiente prisional. As entidades pedem investimentos em políticas de prevenção e reintegração, assim como em estratégias para combater a economia paralela —de narcotráfico e extorsões— que mantém os grupos criminosos.
“O governo Bukele e a Assembleia deveriam dar passos sustentáveis, que assegurem o respeito aos direitos humanos, para desmantelar as gangues e proteger a população dos seus abusos”, diz o relatório. “Isso inclui tratar as causas estruturais da violência, como níveis elevados de pobreza e de exclusão social, e impulsionar processos penais estratégicos focados em julgar os líderes das gangues e investigar delitos violentos.”
As organizações pedem ainda aos Estados Unidos e à União Europeia para que trabalhem em conjunto com outros governos, especialmente da América Latina, para aumentar a atenção internacional à situação em El Salvador. Também incentivam o apoio a jornalistas independentes, para que possam reportar os abusos que ocorrem no país.