Diferente do que muitas pessoas gostam de pensar, o cinema brasileiro é recheado de produções impecáveis que não devem absolutamente nada às produções internacionais. Temos, como exemplo, títulos como ‘Tropa de Elite’, ‘Cidade de Deus’ e ‘Aquarius’, que se tornaram clássicos em suas devidas proporções dentro do cenário cultural nacional – e, dentro desse gigantesco grupo, temos o icônico drama ‘Central do Brasil’, que trouxe ninguém menos que Fernanda Montenegro no papel principal.
Para aqueles que não o conhecem, o longa-metragem acompanha Dora, uma professora aposentada que começou a trabalhar como escritora de cartas para as pessoas analfabetas do Rio de Janeiro, mantendo seu firme posto na Estação Central do Brasil. Dia após dia, Dora ouve as várias histórias que seus clientes lhe contam, mas parece não se conectar como deveria com as mensagens que eles desejam transmitir às pessoas que amam, muitas vezes a milhares de quilômetros de distância. Dessa forma, toda vez que retorna para seu apartamento, ela se reúne com a amiga Irene (Marília Pêra) para decidir quais cartas merecem ser enviadas e quais devem ser esquecidas por remoerem mágoas do passado ou não condizerem com a verdade – uma atitude condenável nos olhos do público.
Todavia, as coisas mudam de forma brusca quando ela cruza caminho com Ana (Sôia Lira), que deseja encontrar o marido que deixou ela e o filho (Vinícius de Oliveira) para trás. A princípio cética quanto ao que Ana diz a ela, Dora adota a missão de cuidar do menino quando a mãe morre atropelada por um ônibus – tentando se livrar dele das mais diversas maneiras, mas percebendo que o elo com o garoto é inquebrável. Ora, ela até mesmo é arrastada para um esquema de venda de órgãos, acreditando que está entregando Josué em mãos capazes para que tenha uma vida próspera. Eventualmente, a improvável dupla cruza o Brasil em direção a uma minúscula comunidade no interior de Pernambuco em busca do pai do menino e em busca de si mesmos.
A princípio, podemos encarar o longa com o convencionalismo das road-trips; entretanto, afastando-se de quaisquer fórmulas do gênero, a trama toma um rumo de amadurecimento, tanto por parte de Dora quanto por Josué, que aprendem a conviver com as diferenças um do outro e unem-se em um laço de amizade que transforma o rico cenário de Walter Salles em um coming-of-age espetacular. Salles, aliando-se aos roteiristas João Emanuel Carneiro e Marcos Bernstein, mergulha fundo no cosmos que constrói, garantindo que o anárquico escopo urbano do Rio entre em conflito com a humildade exuberante de Pernambuco e da fictícia cidade de Bom Jesus do Norte (substituindo o povoado de Cruzeiro do Nordeste). E isso não é tudo: o arco dos protagonistas é o ponto de encontro entre arquétipos tão distintos, infundido com caos, confiança e
Além da narrativa principal, cada uma das subtramas é arquitetada com delicada minúcia, desde os figurinos até a fotografia. Os trajes usados por Dora e Josué são, a priori, conflitantes entre si – gradativamente transmutando-se em um único objeto orgânico que os aproxima como dois velhos amigos. Apesar da alteridade de motivações e de idade, é possível enxergá-los como reflexo um do outro, abocanhados por uma sensação intrínseca de não-pertencimento que justifica a obstinação do garoto em querer encontrar a família que lhe restou e a solidão da escritora, isolada em seu apartamento em meio a fantasmas de outrora que insistem em se apregoar. Ao melancólico final do filme, que mistura tanto frustração quanto resolução, é notável como eles precisavam encontrar um ao outro para, enfim, encontrarem a si mesmos, com Dora resolvendo escrever uma carta para aquele que, de fato, a salvou.
“O acaso sempre tem a última palavra”, Montenegro disse em uma recente entrevista ao Canal Brasil. “E o acaso fez esse filme ir pelo mundo. E onde ele foi, ele foi bem recebido”.
A aclamada atriz não mentiu quando disse essas frases – e a ovação imediata ao filme é refletida não apenas pelos prêmios angariados, mas pelo legado deixado à posterioridade. Montenegro se reafirmou como uma das grandes artistas de todos os tempos ao se tornar a primeira latino-americana e a única brasileira a ser indicada ao Oscar de Melhor Atriz (perdendo injustamente para Gwyneth Paltrow), além de ter levado para casa as estatuetas do NYFCC e o Urso de Prata; como parte da Retomada do cinema brasileiro, o título teve papel importante, seguindo o sucesso inenarrável de produções como ‘O Quatrilho’ e ‘O Que É Isso, Companheiro?’, além de gerar discussões sobre o “modelo cinematográfico” que, a partir do lançamento do drama, deveria ser seguido por outros realizadores – uma constatação, à época, errônea e passível de engessamento da arte fílmica nacional. Todavia, é impossível não comentar a influência que o retrato de Salles sobre o cotidiano brasileiro, muitas vezes mascarado por uma pintura idealista do que o Brasil deveria ser aos olhos do estrangeiro.
A verdade é que, enquanto várias investidas nacionais refletem a capacidade única da nossa arte, são poucas que carregam o espólio que ‘Central do Brasil’ deixou e continua deixando. Vinte e cinco anos depois de seu lançamento nos cinemas, revisitá-lo é sempre uma ótima pedida – e um convite a (re)conhecer uma obra-prima atemporal e icônica.