É muito difícil encontrar alguém que nunca tenha ouvido falar de Alfred Hitchcock ou de Tim Burton: afinal, os dois cineastas, por mais separados que estejam por décadas e décadas de realização fílmica, carregam uma identidade estética única que os colocou no patamar como grandes revolucionários artísticos da esfera do entretenimento.
Dentre as mais famosas produções de Hitchock, podemos citar ‘Um Corpo que Cai’ e ‘Psicose’, longas-metragens que a princípio introduziram técnicas de filmagem bastante avançadas para a crescente polarização que insurgia no cenário mundial – mas que traziam elementos utilizados há várias décadas por um interessante e mágico precursor do cinema como o conhecemos hoje. Burton, por sua vez, sempre trouxe personagens bastante expressivos às telonas, construídos com maquiagens perturbadoras, arcos psicóticos, todos idealizados dentro de cenários retorcidos opressores que convidavam o público para uma viagem fora da realidade – e que também aproveitou o caminho calcado por essa mesma pessoa ainda não revelada.
A verdade é que nenhuma dessas carreiras teria tamanha importância se não fosse por F.W. Murnau. Um dos principais nomes do movimento Kammerspiel e precursor do surrealismo social e, quase redundantemente, do expressionismo alemão, garante-se ao cineasta algumas das obras-primas fílmicas que são revisitadas e que servem de inspiração para qualquer nome que ouse se aventurar no terror, no suspense psicológico ou no thriller (como o clássico ‘Nosferatu’, que viria a reger quaisquer iterações acerca de vampiros e criaturas afins). Entretanto, antes de aventurar-se com mais presença nos gêneros em questão, Murnau arquitetou uma pequena peça que hoje nos soa familiar, mas cuja notoriedade não é legitimada com tanto fervor quanto antes: ‘O Gabinete do Dr. Caligari’.
Em um período pós I Guerra Mundial, a Alemanha encontrava-se fragilizada econômica e politicamente, ainda mais considerando os múltiplos itens do Tratado de Versalhes que arrancavam sua hegemonia de outrora e transformava o país em uma espécie de purgatório em terra. Não é surpresa que, nesse período obscuro e desesperado, a vanguarda expressionista tenha despontado como um reflexo dos anseios pessimistas das pessoas – visto que trazia, como mote, a supremacia das emoções humanas ante a razão. Apesar de despontado primeiro nas artes plásticas, é claro que o cinema não deixaria de lado essa corrente, ainda mais em um período em que a angústia governava cada movimento e cada pensamento. E, dividindo os holofotes com o nascimento da montagem soviética (que se voltaria a uma perspectiva mais guerrilheira e crítica), tal linha criativa teria Murnau como ícone.
A história de ‘Dr. Caligari’ é bastante simples: ao longo de quase 80 minutos, a narrativa é centrada em um insano hipnotizador (Werner Krauss) que usa um sonambulista (Conrad Veidt) para cometer assassinatos. Entretanto, esse espectro criminal, na verdade, é contado a partir da visão de um homem chamado Francis (Friedrich Fehér) e que é a presença central de uma gigantesca reviravolta que descontrói o que acreditávamos saber sobre o longa – e serve até mesmo como análise antropológica e psíquica da condição humana. Afinal, conforme o enredo aproxima-se do final, vemos que Francis é apenas um lunático iludido que inventa inúmeras ficções, estando preso em um manicômio e acreditando que o diretor da instituição é o personagem-titular.
Logo de cara, percebemos que o teor inesperado e surpreendente foi adquirido por dezenas de figuras de alto calibre da esfera contemporânea: M. Night Shyamalan utilizaria em ‘O Sexto Sentido’ uma desconstrução catártica do psicólogo encarnado por Bruce Willis, enquanto Hitchcock nos convidaria a descobrir que o ingênuo Norman Bates era mais problemático do que aparentava. A mente lunática também seria matéria de David Fincher em ‘Seven – Os Sete Crimes Capitais’, ‘Garota Exemplar’ e ‘Zodíaco’, e Darren Aronofsky transformaria o clássico balé O Lago dos Cisnes em um thriller psicológico que renderia a Natalie Portman seu Oscar de MelhorAtriz.
Mas o conceito narrativo não é o bastante para explanar o peso que Murnau infundiu no futuro cinematográfico. É imprescindível mencionar que a técnica expressionista foi estampada, principalmente, nos cenários distorcidos com ângulos fora do conhecimento humano, nos jogos de luz e sombra, na caracterização dos personagens – e em tantos outros espectros. A arquitetura sombria e gótica, saída de uma releitura imagética dos artigos que Sigmund Freud publicaria alguns anos antes, seria transportada para a dramatização teatral de Burton em ‘Edward Mãos-de-Tesoura’ e para a vitoriana cidadezinha de ‘A Noiva Cadáver’ (uma homenagem clara ao vilarejo fictício de Holstenwall); sem esse escabroso e suntuoso suspense, Orson Welles jamais conseguiria ter traduzido sua necessidade de “descarrego emocional” com ‘Cidadão Kane’, considerado por diversos críticos internacionais e nacionais como o filme mais importante da História; sem o filme, jamais saberíamos da conflitante personalidade de Richard Blane em ‘Casablanca’, ou do embate conturbado de Oskar Schindler em ‘A Lista de Schindler’.
A verdade é que ‘O Gabinete do Dr. Caligari’ deu nome às cartas do jogo e estendeu suas ramificações não apenas para sua geração, e sim para décadas (e agora mais de um século) depois de seu conturbado lançamento em meio a um período entreguerras. Sua própria existência, pautada no prenúncio profético da ascensão nazista e da destruição da liberdade de expressão que viria com um regime autoritário e opressor, vem à tona sem precedentes – e com um legado infindável que merece mais reconhecimento do que já lhe garantimos.