Várias analogias entre a ordem absoluta e absolutista de um espaço tido por sagrado por muitos, no radar permanente de jovens de todos os estratos sociais como um meio de vida aparentemente glamoroso, de onde tem-se a impressão de que o dinheiro jorra, são possíveis em “Fome de Sucesso”. O tailandês Sitisiri Mongkolsiri pinta a cozinha de um restaurante sofisticado como a própria encarnação da tirania, um ambiente em que a democracia, além de não ter vez, acaba tornando-se um método contraproducente. Neste trabalho, Mongkolsiri não faz nada de muito inovador, tampouco revolucionário, uma vez que, sob um ou outro viés, filmes como “Pegando Fogo” (2015), dirigido por John Wells; “O Chef” (2021), levado à tela por Philip Barantini; os especialmente bons “O Menu” (2022), capitaneado por Mark Mylod; e “Triângulo da Tristeza” (2022), de Ruben Östlund; além dos brasileiros “O Animal Cordial” (2017), de Gabriela Amaral Almeida; e “Estômago” (2007), de Marcos Jorge, perturbadores; e o documentário “Jiro Dreams of Sushi” (2011), de David Gelb, orbitarem nesse universo pleno de nuanças. Isso só deixa a história levada em “Fome de Sucesso” ainda mais saborosa.
Chutimon Chuengcharoensukying, a modelo e atriz tailandesa de nome grande e olhos miúdos, apresenta desempenho quase sublime na pele de Aoy, a chapeira do restaurante popular dos pais que, no que se anuncia como um golpe de sorte, tem a oportunidade de estagiar num dos estabelecimentos mais badalados da Tailândia e do mundo. Antes de entrar de cabeça na personagem de Chuengcharoensukying, também conhecida como Aokbab, o roteiro de Kongdej Jaturanrasmee serve-se de uma breve introdução, ancorada numa sequência na qual gente muito rica se delicia com uma lagosta assada na pedra, comendo com as mãos, conforme o que se preconiza em coquetéis ocidentais desde o princípio dos tempos; um corte seco, feito o das lâminas bem afiadas com que Aoy é acostumada a lidar há anos, lança o público para o caos da rotina da moça, sufocada em meio a pedidos de pad see ew, o macarrão frito típico da culinária nacional, e os sonhos, meio enrijecidos, quanto a mudar de vida. Num lance meio artificioso, de conto de fadas mesmo, o convite de integrar a equipe do chef Paul, dono do restaurante dá nome ao filme, surge como um farol para quem já se conformava em ir ao fundo.
O encontro da personagem de Aokbab e Paul, é marcado, segundo já se esperava, de tensão, mas Nopachai Jayanama transforma o que poderia ser só uma espiral de vozes alteradas, gestos desmedidos e reações inconsequentes num filme à parte. Deslumbrada entre facas, cutelos e woks primorosamente lustrados, cada qual ocupando um espaço muito bem delimitado sobre um balcão de aço inox, Aoy vence a primeira fase do exame, sobre um aspirante a chef recém-formado numa escola de gastronomia da moda. Quando instada a cortar pedaços muito finos de wagyu, e fritá-los num intervalo humanamente impraticável, as labaredas que brotam do fogão, lindamente marcadas pelos efeitos visuais de Nathamon Thatthanakan, alastram-se pela alma da mocinha a dentro, e no terceiro ato, após empolgantes sessões sobre o expediente de Paul e sua equipe — o jantar na casa de um general, eminência parda da política na Tailândia chega a ser sobrenatural —, Mongkolsiri imiscui-se com mais vontade na essência pronunciadamente farsesca e satírica de “Fome de Sucesso”, crítica a um só tempo contundente e refinada dos hábitos e das perversões de milionários que, quanto mais comem, mais famintos se tornam.
Filme: Fome de Sucesso
Direção: Sitisiri Mongkolsiri
Ano: 2023
Gênero: Drama
Nota: 9/10