Escrever é um processo tão inglório quanto violento. Ao atravessar o raciocínio e a emoção de quem escreve e chegar à rudeza impessoal do papel ou à fria tela dos dispositivos atrevidos que nos rodeiam, num cerco cada vez mais fechado, um texto já começa a sofrer alterações. Raymond Wentworth, o personagem central de “Dia da Namorada”, conta com um dom que o faz único entre milhões, quem sabe bilhões de pessoas no mundo; entretanto, a maneira como usufrui dele e, mais importante, as circunstâncias em que esse talento é forçado a tomar corpo, põem tudo a perder. Michael Paul Stephenson projeta em seu anti-herói defeitos e qualidades que boa parte de quem escreve — e dos que admiram (e invejam) quem escreve — tem ou gostaria de ter, lançando para esta atividade um olhar excruciantemente sincero, que, por natural, alcança também a maldição de um ofício desde sempre desprestigiado; que encerra o melhor e o pior das idiossincrasias de uma pessoa; que aciona nos outros os sentimentos mais nobres e mais mesquinhos, sem medo de cara feia.
Centenas de milhares de cartões comemorativos deslizando numa máquina de tipografia até podem dar a sensação de que a premissa inicial do texto de Bob Odenkirk, Eric Hoffman e Philip Zlotorynski confere, e os americanos continuam a despender três milhões de dólares nessas pequenas joias da indústria cultural, como já ocorreu, cerca de quatro décadas atrás. Odenkirk, o excelente intérprete de Wentworth, é de fato um artista — a despeito de ganhar a vida com uma dificuldade que qualquer um reconhece como injusta, passar como um mero rosto na multidão em todo ambiente que não seja o escritório que divide com outros três redatores (excetuando-se, claro, o Barões das Cartas, o pub onde costuma esvaziar todas as garrafas que pode) e estar prestes a ser despejado pelos recorrentes atrasos no aluguel. É impossível não sentir por esse Shakespeare dos cartões, como dizem dele num tom entre jocoso e pejorativo, os colegas — com destaque para Madsen, personagem de Echo Kellum, que tem sempre a palavra certa a fim de gabar-se de seu trabalho e conseguir levar uma incauta no bico —, menos por sua intimidade com as palavras que por sufocante angústia existencial que o define. Órfão de mãe desde muito novo — o roteiro não diz nada a respeito do pai ou de outros parentes —, Wentworth perdeu a mulher, Karen, de June Diane Raphael, para Harold Lamb, um desenhista de sucesso com quem rivaliza desde muito antes que a Coruja Otimista e a galinha Cordelia o fizessem milionário. Andy Richter não chega a ser o vilão da história — muito mais razoável seria imaginar que Styvesan, o chefe abusivo vivido com energia por Alex Karpovsky o fosse, por demiti-lo sem nenhum motivo, mas o terceiro ato reserva surpresas —, mas rouba a cena mesmo nas rápidas entradas, até que o filme deriva para um suspense kitsch e um tanto delirante, sem prejuízo da qualidade dramática.
Em setenta minutos, Stephenson consegue emplacar uma cornucópia de diálogos, um melhor que o outro — o antimocinho ouve de Jill, a formidável antimocinha de Amber Tamblyn, com quem desenvolve um antirromance, o que ele pretende “beber” (e não “fazer” [ou “pensar”, no original] a respeito de um problema) —, ao passo que vai girando o leme para uma zona cinzenta da personalidade de Wentworth, o que dá azo a duas boas reviravoltas, as duas envolvendo Jill. Mas a segunda, na quadra do desfecho, o diretor sofistica com mais vagar o argumento sobre a profundidade e o quão verdadeiras as relações humanas podem ser. No mundo de lirismo e divagações sem trégua desse homem extraordinário, a vida é mesmo sonho, e sonhos sempre podem converter-se em realidade. Tudo em “Dia da Namorada” é um saboroso absurdo, a começar pela sequência que justifica esse título medonho.
Filme: Dia da Namorada
Direção: Michael Paul Stephenson
Ano: 2017
Gêneros: Comédia/Drama/Thriller
Nota: 9/10