Se for verdade o que alegava o crítico e roteirista norte-americano Roger Ebert (1942-2013) — um dos homens que pensou o cinema com mais profundidade — ao dizer que “quase nunca importa sobre o que diz um enredo, mas como ele diz sobre o que diz”, então “Garota Exemplar”, dirigido por David Fincher, parte da noção mais paradigmaticamente correta de ser um bom filme. A história, lançada em 2 de outubro de 2014, revela-se um modelo de como desafiar a audiência, enganando-a ao fazer pensar que havia verdadeiramente um segredo a ser desvendado quando, na verdade, o coração da trama estava à vista de todos e, todavia, ainda assim oculto.
Adaptar uma narrativa literária para o cinema de forma original, sem perverter a natureza primeira do texto, é um desafio que a maioria dos diretores considera hercúleo, quando não um trabalho de Sísifo. David Fincher dribla a mitologia grega, escala a montanha e não permite que o roteiro — tirado do livro homônimo da jornalista e escritora Gillian Flynn, publicado em 2012 — despenque ribanceira abaixo. Tanto no trabalho de Flynn quanto no filme, Nick e Amy Dunne são apresentados ao público como o casal perfeito, ela mais do que Nick. Depois de passar toda a infância tendo a intimidade exposta pelos pais em livros de autoajuda para crianças, a protagonista, celebrizada nos livros como a Amazing Amy, a “Amy fascinante” (ou “exemplar”, como o título da produção sugere), torna-se na vida a personagem central das histórias que encarnava. Tudo em Amy tem alguma coisa de farsesco, começando por sua completa submissão ao marido, um professor que não é rico como ela sempre foi, e que talvez por isso seja tão atraente aos seus olhos.
A vida dos dois seguiria o padrão do “e viveram felizes para sempre” dos contos de fada, se não fosse pela necessidade repentina de mudança da feérica Nova York para o apagado Missouri, no centro-leste dos Estados Unidos, devido ao câncer detectado na mãe de Nick. No dia em que celebram o quinto aniversário de casamento, ele volta para casa depois de um dia de trabalho, constata que tudo foi revirado e que Amy desapareceu. O que se vê em sequência é o habitual circo midiático, com hordas de repórteres ávidos por um furo, coletivas de imprensa e até um comitê para recebimento de informações organizado pelos pais da desaparecida. Nick parecia estar preparado para tudo isso; no entanto, quando percebe que todo o cenário foi montado para fazê-lo parecer o principal suspeito do crime, emerge das entranhas do personagem de Ben Affleck uma indignação calculadamente furiosa que o roteiro usa para dar início ao primeiro plot twist da trama, sucedido por muitos outros.
É recompensador para o público quando o casal de protagonistas de um filme consegue igual destaque, cada um colaborando com o trabalho do outro, administrando seus egos de maneira civilizada, o que só pode contar a favor. O Nick de Ben Affleck marca a fase madura de sua vida e carreira, muito bem-sucedido desde jovem graças a empreendimentos como “Gênio Indomável” (1997), protagonizado pelo amigo Matt Damon, com quem escreveu o roteiro que coube a Gus van Sant dirigir — Affleck e Damon ganharam o Oscar de Melhor Roteiro Original pelo texto em 1998. Desde então, a evolução de seu desempenho é visível, que manteve a contenção verbal e de expressões dos anos 1990 — como se verifica em produções recentes como “Batman vs. Superman: A Origem da Justiça” (2016), dirigido por Zack Snyder, e “Argo” (2012), que ele mesmo dirigiu —, com a vantagem de que, agora, essa economia dramática se encaixa perfeitamente para um homem de quase cinquenta anos. Em “Garota Exemplar”, Affleck faz questão de exibir seu jeitão taciturno, especialmente num marido engolido por circunstâncias assustadoramente sombrias. Nem seria necessário mencionar o quão importante é a performance de Rosamund Pike na história. Com uma das atuações mais notáveis de sua carreira, Pike consegue captar todas as nuances de uma personagem tão densa quanto poucas já exibidas pela sétima arte, dando vida a uma mulher gravemente perturbada, que se transforma naquilo que mais abominava, embora a culpa não seja totalmente sua, uma vez que foi criada para acreditar que ela era, literalmente, o centro das atenções.
Usando recursos narrativos brilhantemente explorados por Alfred Hitchcock (1899-1980) em “Um Corpo que Cai” (1958) e “Psicose” (1960), como a descoberta do segredo já na metade do filme e o fato de uma das partes de um relacionamento idealizar tanto o parceiro a ponto de querer transformá-lo em outra pessoa — e, na prática, conseguir fazer isso —, David Fincher ilumina as questões eternas que cercam o casamento, a instituição mais falida e invejada de todos os tempos. Uma união é feita de momentos bons e outros nem tanto, e todo casal tem seus problemas, aparentemente insolúveis, que muitas vezes só precisam de uma conversa franca para que os dois voltem a se entender. Um processo simples, mas inviável se só encontra imaturidade, por um lado, e pedantismo, por outro.
Filme: Garota Exemplar
Direção: David Fincher
Ano: 2014
Gênero: Suspense
Nota: 9/10