O maior perigo para uma revelação literária é não conseguir cumprir com as expectativas em seu segundo livro. “Pequena Coreografia do Adeus” é o segundo livro de Aline Bei, consagrada com seu premiado livro de estreia, o romance “O Peso do Pássaro Morto”. Seu estilo próprio de escrever prosa em versos conquistou corações e mentes e foi muito falado nas redes sociais, mídia que Aline Bei domina como poucas.
Os títulos das obras de Bei se demoram em nossa boca, saltam com uma pronúncia cadenciada. Mas esta não é a única coincidência entre suas obras. Da mesma forma que “O Peso do Pássaro Morto”, a “pequena”, como carinhosamente Bei a chama, também se inicia com uma voz narrativa infantil para trazer novamente o mote do abandono, desta vez em decorrência da separação dos pais da protagonista Júlia Terra. É um livro com um tema delicado e polêmico: a relação entre pais e filhos em situação de abandono afetivo do pai e abusividade da mãe.
A obra é dividida em três capítulos. O primeiro é batizado com o nome da protagonista. Júlia é uma pré-adolescente até a metade do livro, sofre violência física e psicológica da mãe e vive uma relação domingueira com o pai. No capítulo seguinte, chamado “Terra”, temos uma adulta. Há um vácuo nessa transição. Parece que não houve desenvolvimento entre a quase criança do primeiro capítulo e a moça aspirante a escritora, mas que trabalha em um café, do segundo. Ela mora em uma pensão e mantém um contato semanal, permeado de culpa, com a mãe. O fecho do capítulo se dá com a morte de seu pai. Alguém aí pensou em Freud e no Complexo de Elektra?
No terceiro e último capítulo, “Escritora”, Júlia, após a perda paterna, decide ter mais protagonismo em sua vida. Perde a virgindade e escreve pedindo dicas para um vizinho escritor. Essa carta traz riqueza à obra, visto que é uma clara alusão ao clássico “Cartas a um Jovem Poeta”, de Rilke. O livro termina com Júlia sendo convocada a cuidar da mãe, pois esta começa a apresentar sintomas de uma doença mental. O ponto alto desse trecho da narrativa é a frase emblemática “senti medo de perdê-la antes mesmo de tê-la”. Delirando, a mãe vê em Júlia seu ex-marido, oferecendo-lhe assim o tão almejado afeto, que foi aceito a despeito de ser direcionado a terceiros e de cunho sexual. Termina com um freudiano beijo na boca entre as duas.
Como o tema central e desencadeante do livro é a relação da protagonista com os pais, “Pequena” poderia ter explorado mais as implicações psicológicas dessas questões, sobretudo como forma de alicerçar o desfecho deliberadamente provocador com a figura materna. Poderia haver mais elementos ligando a conturbada infância de Júlia e suas relações interpessoais na vida adulta. A fragilidade da construção narrativa desta transição deixou o último capítulo apressado. O livro passa como um sussurro pelo tema, poderia ser muito mais potente.
Há personagens e situações aleatórias no romance, como as cenas sem relevância de conversas com o filho da dona do café, e a de sexo entre a dona do café e seu cliente assíduo. Ficamos sem entender exatamente a função desses personagens no contexto do enredo.
Creio que Bei tentou repetir a fórmula do seu primeiro livro, sem conseguir alcançar a mesma profundidade e impacto.
Aparentemente, seguiu uma receita que parecia infalível. A receita: inicie com um narrador infantil na primeira pessoa, este deverá ter perdas traumáticas da inocência e esperança. Ante as dificuldades da vida, conseguirá apenas um emprego subalterno. Descobrirá a morte de algum familiar (humano ou não) por meio de aglomerado de policiais e socorristas ao chegar ao local. Acrescente uma mãe frustrada que não consegue maternar. Distribua melancolia sem moderação, explore partes do corpo e seus fluidos de um jeito meio chocante e nojento, mas sem exagerar para não espantar os leitores mais sensíveis. Por fim, traga à tona a loucura de algum personagem. Uma fórmula vencida.