Raquel, 29 anos, me escreve perguntando o que eu sei hoje, com quase 45 anos, que eu não sabia aos 30.
Primeiro de tudo, preciso dizer que sinto falta de algo que eu fazia magistralmente aos 30 que desaprendi por completo: dormir. Não tenho problemas com o pegar no sono. Eu posso encostar e dormir a qualquer hora do dia. A dificuldade é não acordar várias vezes durante a noite.
Tudo me desperta: a dor no pescoço, a dor na lombar, a bexiga cheia (saudade de uma musculatura mais forte), sonhos que me abalam, medo de perder a hora para a escola da Rita, desassossego com algum barulho vindo do quarto da minha filha, saudade, eu sinto uma saudade insuportável de algumas pessoas, me falta o ar de tanta saudade, a falta de dinheiro, minha imensa capacidade para torrar todo o meu dinheiro e por aí vai.
Mas hoje eu entendo, por exemplo, que jamais vou superar a infância e a adolescência. Aos 30 a gente tem certeza de que vai atingir um platô de adultice. Uma espécie de data em que você acorda bem menos imbecil e toda a sua ingenuidade e todo o seu deslumbramento e toda a sua capacidade para proferir as piores frases do século ficaram para trás, como uma comprida mancha neon escondida na cauda do seu manto sagrado da perfeição.
Hoje eu sei que posso ter 65 anos e 12 anos no mesmo dia. Que ter 19 anos é um infortúnio que me aparece a cada meia hora. E que isso não vai mudar pelo menos pelos próximos 20 anos. Eu quase sempre estou fazendo algo sem a menor ideia de como se faz e com aquele olhar desesperado de uma criança pequena que foi esquecida na escola.
Ser uma superadulta totalmente forçada e profundamente incapaz faz minha filha ser completamente obcecada de amor por mim, mas é também o que faz ela ter mais respeito pela braveza do pai. E que bom que ela tem a nós dois.
Também tinha um ideal de que, lendo, estudando, pegando na internet tantos “PDFs” de aulas de ciências sociais, me tornando cada vez mais uma mulher de esquerda, uma luz infinita de simplicidade, humildade e modéstia me invadiria. E eu, por fim, romperia com a minha adoração indisfarçável pelo luxo e melhoraria minha imensa dificuldade em não ser uma fresca intolerável em viagens.
Acreditava naqueles exercícios de exposição ao medo/dificuldade, ensinados por alguma terapia cognitiva comportamental. Eu só piorei. Sou o tipo de sujeito indigesto que, ao ser convidado para a casinha na montanha de algum amigo, pergunta há quanto tempo o ambiente não se beneficia do vento ensolarado e mata ácaros de janelas excessivamente abertas, os cobertores recém-chegados da lavanderia e os banheiros bem limpos. Se vou dividir vaso sanitário com mais alguém além de meu consorte, apenas não vou. Se toda uma turma vai querer mandar em meus horários e programações, apenas não vou. Se é ano novo ou carnaval, não vou anyway.
Em lugares xexelentos (toda uma vida participando de feiras literárias pelo Brasil) sofro profundamente com aquelas pias desgovernadas que molham a bancada inteira, com os pisantes emborrachados e desasseados de chuveiro, aquela cor de desprezo por pés pagantes. E ainda penduram essa desgraça junto com toalhas. E a toalha de rosto que é igual ao tapetinho? Colchões da pior espécie, cobertores extras com cheiro de mofo, aquele piso de quintal de mano churrasqueiro colocado dentro de quartos, salgadinho sabor artificial de cheddar no barzinho.
Ah, meus amigos, tanta gente sofrendo no mundo, tanta guerra em curso, mas eu sigo sendo essa bostinha branca alérgica com carinha de socorro a cada vez que preciso sair da minha bolha de conforto e paródia aristocrática. E não vou mais me curar de não ser uma pessoa gente boa e facinha de conviver e good vibes e legalzona pacas e leve e que maravilha estar perto de mim.
Também sempre acreditei que em algum momento levantaria esse corpinho flácido da minha mesa de trabalho e me daria uma senhora bunda. Sempre pensei na senhora bunda. Um dia, terei a tal bunda que mobiliza olhares em uma praia. Uma bunda tão jovem que é uma senhora bunda. Nunca mais. Isso tenho certeza. Abandonei minha bunda faz tempo. Ela é mole, caída e lipodistrofiosa mas eu gosto demais de tudo o que eu faço sentada e deitada para, a essa altura da vida, decidir que vou agachar duas horas por dia arregaçando meus joelhos pra fazer algum macho torpe suspirar pelos meus glúteos máximos. Faço um mínimo de ginástica diária em nome da saúde e do futuro, para não piorar das dores e para não ser uma idosa muito tolhida.
Há uns anos, parei de achar que brigas catárticas e honestíssimas com minha mãe resolveriam nossos entraves de conexão. Com frequência compro flores brancas e rezo para divindades fêmeas protegerem nossa relação possível. E que chegue ao coração da minha mãe todo o meu amor e toda a minha gratidão por ela existir. Eu vejo seu amor eu vejo tudo o que foi feito por mim. Jamais desisti da minha mãe, apenas aprendi, com muita dor (muita mesmo) o quanto a gente pode se machucar e se destruir se a intimidade ultrapassar os limites seguros de um convívio quase frio, mas diário. Estou aqui 24 horas por dia, ainda que eu já tenha ido embora faz um tempo.
Desisti também de encontrar uma resolução gigante e definitiva que me trouxesse muita alegria ou bem-estar. Vinda da terapia ou da maturidade ou da maternidade. Estou sempre meio triste, meio melancólica, meio cagada de cabeça, com dor, com algum resfriado. Sempre ansiosa, sem pertencer a nada, terminando os dias devendo afeto, ideias e pagamentos.
Desisti de mudar, mas também desisti de aceitar que vai ser assim mesmo e não fazer nada para mudar. Então, ao mesmo tempo que abracei uma certa condição de inquietude aconchegante e de quebranto mental, todo dia acordo querendo encontrar uma resolução gigante e definitiva que me traga muita alegria ou bem-estar. Porque é confuso e complexo e repetitivo ter 44 anos, bem parecido com ter 30 anos (ou até mesmo 20).
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