O que você estava fazendo quando tinha 15 anos? O florescer da adolescência pode significar uma época de descobertas, de aventuras, de novidades. Konoplya teve tudo isso, mas não da maneira convencional. Com 15 anos, o ucraniano teve de deixar sua casa, sem conseguir pegar seus pertences, e se mudar para outra cidade. A Rússia estava invadindo a Crimeia. Konoplya deixou tudo para trás. Sua mãe ficou: servia como médica na linha de frente. Serve até hoje. A guerra não acabou. Konoplya é o personagem que nos ajuda a arrematar a série sobre os impactos da guerra no futebol ucraniano. Ele é lateral do Shakhtar, e da seleção ucraniana. E tem uma história para nos contar.
História que não deixa de ter sonhos. Na conversa, tentamos buscar os sorrisos, mas logo o assunto voltava a ficar sério. Como foi a vida de Konoplya desde a adolescência. O jogador, que estava no hotel se concentrando para o grande clássico ucraniano desta sexta-feira, contou como teve de fugir de Donetsk para se refugiar próximo da capital.
“Foi chocante, porque tudo foi durante o verão de 2014. Eu estava com meus pais, na praia, em Mariupol, quando tudo começou. Eu não pude nem ir para casa pegar minhas roupas. A última vez que fui para minha casa foi antes das férias. Depois, eu nunca mais voltei”, recordou.
Konoplya lembra que “ninguém sabia o que fazer”. Depois de um mês, o Shakhtar organizou a logística para se mudar para perto da capital Kyiv, longe dos mísseis russos. Konoplya, nesse momento da guerra, ficou afastado dos pais, que voltaram para Donetsk.
“Eles me prometeram que tudo ficaria bem, que eu não tinha que me preocupar. Como todos os pais fazem com os filhos”, contou.
O Shakhtar ocupou a maior parte dos quartos de um hotel próximo a capital e usou as instalações esportivas do Arsenal, de Kyiv, para voltar para a rotina de treinos. No Shakhtar desde os oito anos, o lateral não deixou que a guerra levasse seus sonhos. Usou o futebol como ferramenta para alcançá-los.
“O futebol é tudo para mim, é tudo na minha vida. Hoje, é uma das poucas coisas que podem fazer as pessoas felizes. Quando jogamos na Liga dos Campeões, tentamos fazer o melhor contra grandes clubes na Europa, contra Real Madrid, Leipzig, Celtic, como ano passado, ou Barcelona, esse ano. Nós perdemos, mas fomos bem e poderíamos ter conquistado pelo menos um ponto nesse jogo. Eu também jogo pela seleção, e posso fazer feliz pessoas de outros lugares do país. Pessoas que estão lutando pela gente, lutando pelo nosso país. Muitos estão orgulhosos do nosso time, que representa nossa mentalidade no mundo. É uma experiência incrível”.
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O lateral garante o foco no futebol, e tenta deixar de lado o cenário caótico do dia a dia na Ucrânia em tempos de guerra. “Todos nós somos profissionais, e devemos ter um ‘chip diferente’. Um para o jogo, e um para a nossa vida. São quase pessoas separadas”.
Mas às vezes, não é fácil…
Konoplya jogou emprestado pelo Shakhtar no F.C Desna, um dos clubes que teve seu estádio destruído durante a guerra com a Rússia. O lateral ainda tem amigos na cidade de Chernihiv, e lamenta que o clube tenha acabado por conta do conflito.
“Me faz sentir raiva quando eu vejo o que aconteceu com o estádio deles. Tenho amigos na cidade. As coisas que eles me contam são terríveis. Não consigo nem imaginar, não sei como explicar. Não é tão longe de Kyiv, menos de 100km”, lamentou.
Konoplya compartilhou uma das histórias. Apenas uma entre as milhares de histórias tristes que se espalham no cotidiano do povo ucraniano desde 2014.
“Eu tenho um amigo que é professor de kick box. Eu treinei com ele quando estava lá, e mantivemos contato. Ele me disse que um dia, ele apenas saiu de casa e ouviu um míssil se aproximando. O míssil ia chegando cada vez mais perto, ele deu dois passos para fora, pulou e ouviu a explosão muito perto dele. Ele disse que teve muita sorte. O míssil explodiu a cerca de dez metros do prédio dele. É apenas uma das histórias. São milhares de histórias como essa”, relatou.
Mudança de cenário
O dia a dia do Shakhtar mudou consideravelmente desde a invasão da Crimeia, em 2014. Da logística a procura por jogadores no mercado de transferência. Do estádio ao apoio da torcida.
A liga ucraniana ainda é casa de 61 jogadores estrangeiros, 25 destes brasileiros. Mas há uma diferença no perfil de contratações. Se na temporada 21/22 70 milhões de euros foram gastos pelos clubes em contratações, na temporada seguinte o valor caiu para menos de um terço. E na última janela, foram 16 milhões gastos. Na janela de 22/23, 151 milhões foram arrecadados pelos clubes em vendas. Fora os jogadores que saíram de graça, se valendo da regra da Fifa que libera atletas em zonas de conflitos.
Os números de vendas foram impulsionados pelo Shakhtar, que negociou Mudryk, David Neres, Dodô, Marcos Antônio e Fernando por quase 115 milhões de euros. O Dínamo de Kyiv negociou Zabarnyi e Tsygankov por 22 e 5 milhões, respectivamente.
“O Shakhtar teve que reconsiderar como eles trabalham no mercado. Lacina Traoré é o único jogador estrangeiro que eles assinaram antes da invasão que ainda está lá. Eles tiveram que fazer o scouting em lugares diferentes. Como Venezuela, Equador… Eles trouxeram alguns jogadores ucranianos que estavam jogando fora, como em Croácia, Hungria, Bélgica… E assinaram alguns brasileiros, mas perfis diferentes. Eles precisam se desenvolver mais para alcançar um nível mais alto para o clube conseguir revender por uma boa quantia”, analisou Andrew Todos, jornalista britânico do site Zorya Londonsk especialista em futebol ucraniano.
O Shakhtar também perdeu muita receita por não conseguir usar a Dunbas Arena, o primeiro estádio cinco estrelas da Ucrânia, um dos mais modernos da Europa. A nova rotina requer diversas viagens de ônibus para o time conseguir entrar em campo, como explica Konoplya.
“Não posso dizer que nos adaptamos a isso, porque é muito difícil. Temos um jogo contra o Dínamo em Kyiv, amanhã (dia 03), e depois temos um jogo contra o Barcelona, em Hamburgo, dia 07. Então depois do jogo (contra o Dínamo), dia 04, temos de ir para Lviv, ficar lá uma noite, treinar no dia seguinte de manhã, colocar nossas coisas no ônibus, ir de ônibus para a Polônia, talvez seis horas (de viagem), e depois pegar um avião por mais algumas horas para ir para Hamburgo”, contou.
Os sonhos, afinal, não estão mortos
Se no início da sequência de reportagens falamos em “sonhos destruídos”, preferimos fechar a série de forma diferente. Konoplya nos traz que, apesar de toda a tragédia, ainda há esperança, e sonhos em solo ucraniano.
O lateral, hoje, defende também a seleção ucraniana, e se mostra muito orgulhoso por conseguir representar seu país nos gramados.
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“Estou tão orgulhoso disso. Quando vamos para os jogos, tentamos não apenas jogar bem, tentamos fazer mais, tentamos lutar pelo nosso povo. Agora, significa mais do que nunca”, comentou.
Konoplya sonha com a Ucrânia na União Europeia, vivendo um dia a dia “normal” novamente. Sonha com um Shakhtar grande novamente no cenário internacional. Como foi quando vários brasileiros brilharam por lá.
“Vejo o Shakhar como um time que pode voltar a ser um dos grandes times na Europa. Como éramos como tínhamos jogadores como Fred, Teixeira, Douglas Costa, Fernandinho. Esses caras eram incríveis, de um nível altíssimo. Tentamos ter o mesmo nível, mostrar nossa força nas competições internacionais, e acho que nos saímos bem”, projetou.
E o futuro de Konoplya? O lateral também sonha. Perguntei a ele como se via daqui a cinco anos. “Jogando no Barcelona”, disse e sorriu. Entrei na onda, ri também, mas logo Konoplya ficou sério.
“Barcelona é um dos times, também gosto do Liverpool, do Chelsea. É um dos meus objetivos, dar esse passo e ir para um campeonato desses e tentar sentir a diferença de níveis, e tentar entender qual nível eu posso atingir”.
Nunca duvide de um ucraniano. A resiliência e a resistência estão no sangue, que foi passado de geração para geração. Da Ucrânia Ocidental, que suportou o Holodomor de Stalin, aos soldados que resistem no campo de batalha em busca da manutenção nacional. Aos atletas que entram em campo para representar o país e mostrar, afinal, que a Ucrânia resiste. E sonha. Afinal, futebol é muito mais que um jogo.