Os mecanismos históricos por trás da construção dos preconceitos são o tema do novo livro dos historiadores Leandro Karnal e Luiz Estevam Fernandes. Embora os alvos da lógica preconceituosa possam se transformar muito no espaço e no tempo, os autores mostram que alguns traços-chave do fenômeno —como a tendência a dividir o mundo entre “nós” e “eles” e a nostalgia por um passado idealizado— pouco mudam.
“Ficamos muito impactados, por exemplo, com a extensão e a universalidade da misoginia. No caso do Brasil, um tipo de preconceito igualmente fundante é o racismo, o que é muito irônico quando consideramos que a maioria da população é feminina e afrodescendente”, diz Karnal em entrevista por vídeo, da qual também participou o coautor da obra.
De fato, a discriminação contra as mulheres é apelidada no livro com a duvidosa honra de “o primeiro dos preconceitos”. Além da misoginia e do racismo, os capítulos abordam ainda a homofobia e outras formas de discriminação ligadas à identidade de gênero, à xenofobia, ao etarismo e à gordofobia.
“Um dos critérios para chegar a essa lista foi justamente o de pensar sobre o mecanismo dos preconceitos”, explica Fernandes. “O discurso ressentido, a formação da identidade por oposição ao outro, são elementos fáceis de aplicar a outros fenômenos do tipo.”
A discriminação de fundo religioso, por exemplo, aparece como elemento justificador e facilitador da misoginia e da homofobia ao longo da história do Ocidente na narrativa da dupla. É o terceiro livro no qual os historiadores colaboram, depois de “História dos Estados Unidos”, do qual também participaram outros autores, e “Santos Fortes”.
Embora abordem aspectos da trajetória evolutiva humana e até da neurociência para entender a profundidade das raízes do preconceito, os historiadores enxergam com algum ceticismo a tentativa de entender seu funcionamento com base em experimentos, como os arquitetados por pioneiros da área de psicologia social a partir de meados do século 20.
Alguns desses experimentos pareciam mostrar que bastaria dividir aleatoriamente dois grupos de voluntários —simplesmente tirando par ou ímpar ou cara ou coroa— para que surgisse um preconceito incipiente de um grupo contra o outro.
“Uma influência importante que está presente no livro é o do trabalho do Jonathan Haidt, que é um psicólogo social e usa a analogia do elefante e de seu ginete [a ideia de que a razão humana seria equivalente ao pequeno condutor de um elefante, com pouca capacidade de controlar o paquiderme, equivalente às emoções e instintos]. A questão central aqui é que a verdade, muitas vezes, não é o objetivo, não é o escopo: o que as pessoas querem é pertencer [a um grupo]”, diz Karnal.
“Mas confesso que há um medo da nossa parte, ao explorar essa ideia de reproduzir em laboratório todos os comportamentos humanos, que é o de acabar naturalizando a ideia de preconceito. E nós participamos do pressuposto de que ele é uma criação humana que atende a demandas sociais e ao domínio de certos grupos. Portanto, ele não é natural”, argumenta ele.
Paradoxalmente, as contingências históricas que levam à formulação de um tipo específico de preconceito se revelam inclusive quando ele é pintado como natural, por diferentes motivos.
“Vou parafrasear um colega nosso que dizia que no século 16 predominava a Igreja e, no século 19, o laboratório. Eu complemento essa frase dizendo que, no século 19, predominam o laboratório e a nação”, diz Luiz Estevam Fernandes.
“Se você pensar na pátria, ela tem o seu próprio hino, as pessoas passam a morrer e viver por ela, existem altares —o vocabulário religioso se transfere para ela. E depois o laboratório confirma uma série dessas crenças com base numa inteligência branca, europeia, que é a vista como a fonte da verdade.”
Esse mecanismo, para os autores, está por trás do racismo “científico” ou da transformação da “sodomia” da Idade Média, termo genérico que designava pecados sexuais que englobavam a homossexualidade, na patologização das relações sexuais pelos médicos do século 19.
“Quantas vezes, por exemplo, já não ouvimos falar de pesquisas tentando investigar se a homossexualidade tem origens genéticas ou não? Se houvesse um órgão de fomento à ciência na Grécia ou em Roma na Antiguidade, essa pergunta nem chegaria a se tornar tema de pesquisa, porque não havia a concepção da homossexualidade como algo separado do resto do comportamento sexual humano”, conclui Fernandes.