Escrevo este texto depois de uma cirurgia que precisei fazer às pressas. Eu estava ótima, trabalhando, feliz e produtiva quando uma pedra atrapalhou meu caminho e me obrigou a parar. Parar tudo. Cheguei ao hospital com muito desconforto, quase no limite da dor. Impressionante minha resistência, acho que fiquei calejada com os episódios que venho contando aqui. Eu mesma avisei todas as pessoas com quem trabalho e convivo de que teria de sair do ar. Fui no automático contatando um a um, contando o que tinha acontecido. Todos foram amáveis dizendo que eu não me preocupasse, que cuidasse de mim. Nunca foi diferente, e lembrar disso me comove. Sempre que fui internada por algum problema de depressão/álcool, todos falavam: claro, foca e cuida de você.
Já há três dias no hospital, me emociono ao me dar conta de que só hoje consigo efetivamente cuidar da minha recuperação. Sei separar e distinguir as dores. Me conheço, dou nome aos sentimentos e tenho certeza de tudo que fiz nos últimos dias antes de chegar aqui. Isso é inédito! Estar internada e poder cuidar única e exclusivamente dessa dor que me acomete agora, uma dor meramente física, é algo tão novo que me sinto como um bebê descobrindo sensações.
Nas outras ocasiões em que me vi afastada por questões de saúde, estava sempre com muita mágoa e uma mistura de sentimentos. Na grande maioria das vezes, não sabia exatamente como havia chegado onde eu estava, num pronto-socorro ou no hospital, nem por que havia sido internada… A dor não era apenas física, a ela se sobrepunha uma outra: lidar com a dor de um braço quebrado, por exemplo, e a dor da culpa por ter me causado algo que eu não queria. É a dor do álcool machucando meu sangue e rasgando meu raciocínio lógico. Uma dor física com a sequela da dor moral: era sempre difícil saber qual doía mais.
Sempre enfrentei bem situações extremas como a que me encontro hoje. Me entrego para ser cuidada. Pois bem, aí está. O que acontecia quando eu estava bebendo muuuuito é que eu estava precisando desesperadamente que algo acontecesse para que eu fosse parar no hospital. Não poderia deixar acontecer naturalmente… Bebia demais ao longo de duas semanas e procurava ajuda: vejam, estou bebendo muito, minha saúde mental e física não está boa, EU PRECISO DE AJUDA. Mas era impossível pedir ajuda por algo que eu não sabia que tinha, de que não fazia a menor ideia que me habitava.
Enquanto escrevo, passa um filme na minha cabeça. Me vêm à memória momentos cheios de dor, de mágoa, de medo. Eu tinha medo de saber o que eu havia feito. Morria de medo de sair do hospital e enfrentar o mundo. Qualquer fratura exposta era água com açúcar perto da culpa que eu sentia por ter gritado, mentido, quebrado, batido, vivido e, de certo modo, morrido.
Amanhã deixo o hospital depois de três dias internada devido a uma pedra. Hoje ela saiu e não vai mais voltar. Não vejo a hora de ir pra casa, cuidar de mim por conta própria, tomar banho, fazer comida. Eu sempre procurava meu bem-estar nas coisas, nos outros. Hoje consigo acolher minhas angústias, dificuldades, dores, alegrias, tristezas. Sou meu lar. O que sinto não é pior nem melhor do que os outros sentem. Não tem nada de extraordinário! Sou uma mulher alcoólatra em recuperação e com um monte de outras coisas para resolver. Ainda bem.
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