Argentinos — e argentinas — continuam a surpreender o mundo, para o bem e para o mal. No que respeita ao cinema, é até expletivo lembrar a maturidade dos filmes realizados aquém do rio da Prata, famosos por suas tramas originais, cheias de guinadas, e, sobretudo, indiferentes a patrulhas ideológicas, e nesse particular, a diferença entre seus pares do Brasil se acentua. Parece haver qualquer coisa de mágico nos bons ares daquela imensa extensão de terra entre a cordilheira dos Andes a oeste e o oceano Atlântico a leste, favorecendo a convergência de duas artes irmãs para que se chegue a um resultado inédito. “Elena Sabe” é mais uma dessas preciosidades da indústria cultural argentina, pródiga em tirar o melhor das tantas manifestações artísticas sem maiores pretensões e, ao fazê-lo, fomentar pequenas grandes reviravoltas no cenário cultural e filosófico da vida contemporânea.
A versão de Anahí Berneri para o livro de mesmo nome de Claudia Piñeiro a um só tempo conserva o frescor da pena da “a Hitchcock Cisplatina”, suspense cíclico acerca dos desdobramentos de uma morte toda permeada por brechas lógicas, ao passo que oxigena o que é contado graças às precisas decisões estéticas da diretora, fenômeno que igualmente se observa em “Viúvas Sempre às Quintas” (2009), de Marcelo Piñeyro, adaptação de “As Viúvas das Quintas-Feiras”, publicado em 2005, também da lavra da romancista.
Elena está sempre cabisbaixa, anda devagar, como se procurasse no chão a vida que perdera sem saber onde. Sua bengala faz com que pareça um estorvo maior do que ela mesma reconhece, mas o vaivém de trabalhadores pela Constitución, um dos bairros mais populosos da capital, não a intimida. Como nas páginas de Piñeiro, a protagonista do filme de Berneri é uma ex-contadora de 63 anos, nitidamente perturbada, em roupas que deixam-na pelo menos duas décadas mais velha, sem mencionar os cabelos em desalinho, acumulando tinturas que escorrem aos poucos, revelando o fundo alvo feito leite do qual dá a impressão de se orgulhar.
A fotografia de Federico Lastra mostra-se um aliada inestimável na composição de Mercedes Morán, que capta a delicadeza de sua personagem em minudências que flertam com o genial; Elena definha a olhos vistos, consumida pelo mal de Parkinson, transmite um desalento quase abjeto, mas se recusa a entregar-se, vivendo suas limitações de mobilidade e os lapsos de memória como se tudo fizesse parte de uma grande brincadeira de Deus, de mau gosto, mas com hora certa para acabar. Já nos primeiros minutos de exibição, o roteiro de Gabriela Larralde trata de desfazer a tensão maior do enredo, para, claro, substitui-lo por tantos outros, ainda mais erodentes: a polícia toca a campainha de sua casa para lhe comunicar a morte de Rita Elena Alonso, cujo cadáver foi achado com escoriações no pescoço.
A diretora usa de perícia ao insuflar em Elena a revolta pelo que encara à luz ou da incúria das autoridades ou da ofensa pessoal. Para ela, é inadmissível a hipótese do suicídio de Rita, e então começa uma verdadeira saga, a procura de uma mãe pela dignidade da filha. A história enfronha-se numa sucessão de flashbacks nos quais Rita, interpretada por Érica Rivas na fase adulta, assume a figura de Miranda de la Serna — sua filha na vida real —, enquanto Morán cede lugar a Agustina Muñoz, sua versão mais jovem, em sequências que remontam à férias das duas nas praias de Mar del Plata.
Está, contudo, no presente o eixo em torno do qual gira “Elena Sabe”. Berneri amarra esses segmentos de seu filme à atual decrepitude de Elena, flagrante e propositalmente desconexa de seu vigor ao bater de frente com a polícia inepta, a justiça e sua burocracia insultuosa, o sistema de saúde à beira do colapso. Obliquamente, a diretora toca em assuntos a exemplo de aborto, eutanásia, de que forma a Igreja esclarece ou confunde nessas abordagens, bem como as eventuais brigas entre mãe e filha, que acabam por tornar ainda mais enternecedor o argumento central. Morán e Rivas lideram um espetáculo humanístico e niilista, de uma esperança sem razão, porém vital, o próprio fundamento da maternidade, deslindado com ainda mais potência do que fizera Ramón Salazar em “O Vazio do Domingo” (2017), um dos melhores filmes sobre o tema já feitos, ou “Julieta” (2016), de Pedro Almodóvar, um dos papas dessa congregação.
Filme: Elena Sabe
Direção: Anahí Berneri
Ano: 2023
Gênero: Drama
Nota: 9/10