Unir a identidade mental e corporal é um dos desafios da medicina quando o assunto são corpos transgêneros –e a forma como isso ocorre vem mudando. A feminização, que por muito tempo indicava procedimentos estéticos amadores que poderiam trazer risco à vida, está se tornando cada vez mais profissional. As injeções de silicone industrial para formar mamas e glúteos, por exemplo, estão perdendo espaço.
De acordo com José Carlos Martins Junior, cirurgião plástico e autor do livro “Transgêneros: Orientações Médicas para uma Transição Segura”, até mesmo o termo implante mamário deve ser evitado por não expressar a complexidade da intervenção.
“A gente chama de feminização do tórax, porque os implantes mamários são só uma parte, não é simplesmente implantar mamas em uma mulher trans. Você precisa colocar os implantes embaixo da musculatura. Muitas vezes, precisa tirar gordura da barriga para colocar junto para ficar com o contorno mais harmônico, operar a região das axilas”, explica Martins.
O custo médio de uma feminização depende da quantidade e complexidade dos procedimentos, mas só no tórax chega a custar no Brasil cerca de R$ 20 mil. Com lipo LAD, enxertia ou prótese de glúteos e remodelação de costelas, por exemplo, o valor pode subir para R$ 150 mil.
O médico afirma que não existe “feminização total, nem feminização completa”. “É até bastante ruim para paciente ouvir esse termo, machuca bastante, porque dá a sensação de que a sociedade está indicando a cirurgia. E a necessidade tem que vir dela”, diz.
No caso da cantora e compositora transgênero Verónica Valenttino, 40, ganhadora do prêmio Shell de Teatro pelo musical “Brenda Lee e o Palácio das Princesas”, o processo de feminização do corpo foi um marco em sua vida.
Iniciado há oito anos, os procedimentos impactaram diretamente em sua autoestima e incluíram aumento das mamas, uso de hormônios e harmonização facial com a dermatologista e pesquisadora Bianca Viscomi, precursora de estudos e pesquisas sobre intervenções minimamente invasivas em pessoas trans no Brasil.
“Comecei a partir dos hormônios. Eu era extremamente magra e dentro desse período eu pude vivenciar e presenciar novas curvas no meu corpo. Me tornou mais mais bonita, mais autoconfiante e, obviamente, uma pessoa mais feliz”, afirma a artista.
O processo de feminização do tórax da cantora está relatado na série documental “Alta Estima”, exibida em 2023 pelo canal no E! Entertainment e conduzida pelos médicos Gabriel Basílio e Alexandre Martins
“É uma conquista muito grande, porque muitas de nós já morreram, já se deformaram ao se submeterem a processos extremamente invasivos e perigosos”, diz ela.
“Ainda existem muitas de nós que não tem condições financeiras, que vivem essa marginalização dos próprios corpos, sendo empurradas o tempo todo para prostituição. Mas temos conseguido chegar em outros lugares, conquistar outras profissões, transformar essa triste realidade.”
A ativista LGBTQIA+ Keila Simpson, presidente da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), pontua, contudo, que mesmo com avanços médicos, o acesso das pessoas transgênero a esses procedimentos ainda precisa ser facilitado, principalmente no SUS (Sistema Único de Saúde), uma vez que nem todos os estados dispõem de centros médicos públicos capacitados para atendimento dessa população.
Levantamento da Folha mostrou que apenas 8 das 27 unidades da Federação dispõem de hospitais que oferecem cirurgias de redesignação sexual, o que leva homens e mulheres transexuais a abandonar seus estados ou percorrer centenas de quilômetros para realizar o procedimento.
“Essas políticas estão contidas no processo transsexualizador, não é um privilégio, como muitos acreditam. É uma demanda da população trans que precisa, que também paga impostos”, diz Simpson.
A ativista reforça que a parte cirúrgica é apenas “metade” do processo, que também envolve fases importantes de pré e pós-operatório –limitações de atendimento em qualquer momento, portanto, torna o acesso ao serviço uma barreira ao grupo, diz.
Segundo Martins Júnior, fundador do Transgender Center Brazil, clínica referência em cirurgias de pessoas transgênero do país, uma feminização segura demanda “planejamento corporal”. A paciente disposta a colocar mamas deve, por exemplo, preparar-se com no mínimo três meses de hormonioterapia.
“Antes disso, ela não vai ter provavelmente um broto mamário para se colocar a prótese de mama corporal. São pelo menos entre 12 e 24 meses para se pensar em uma lipoaspiração, para uma lipoexertia de glúteo, uma prótese de glúteo. Os procedimentos corporais são complementos da hormonioterapia”, exemplifica.
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