Pelo diagnóstico de Sônia Barros, diretora do Departamento de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde, a epidemia de ansiedade e depressão que assola o Brasil e o mundo é praticamente insolúvel e não tem como ser combatida só por profissionais de saúde e com políticas públicas para o setor. Junto a isso, ela diz, problemas socioeconômicos e hábitos como o uso excessivo de internet –que levam ao consumo indiscriminado de medicamentos– deve ser mitigados.
Professora titular aposentada de Enfermagem da USP (Universidade de São Paulo), onde fez mestrado e doutorado, é especializada na área psiquiátrica. O departamento que dirige no governo Lula foi criado nesta gestão –até então o setor respondia a uma coordenação.
Uma rara mulher negra em postos de destaque no governo federal, Sônia Barros coordenou em 2007 o “Censo psicossocial dos moradores de hospitais psiquiátricos do Estado de São Paulo”. O estudo mostrou que, enquanto na época 27,4% da população do estado de São Paulo era composta de pretos e pardos, em hospitais psiquiátricos o índice era de 38,36% –concluindo que uma proporção maior de negros estava internada por não ter renda e/ou lugar para morar.
Ao assumir o atual cargo, em março de 2023, no então recém-criado Departamento de Saúde Mental, a diretora solicitou que os termos “Álcool e Outras Drogas” fossem incorporados ao nome oficial –alteração que passou a valer em dezembro. “Porque assim assumimos que as necessidades das pessoas que fazem uso de álcool e drogas são um problema de saúde, e nós precisamos cuidar e ter políticas para essas pessoas.”
Na entrevista a seguir, em que faz um balanço do início de sua gestão, ela, no entanto, se recusou a comentar o imbróglio das comunidades terapêuticas, alegando que o tema está sob a alçada do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social. Há um paradoxo na opção de não debater o problema: nesses centros, que costumam incorporar religião ao tratamento e nos quais têm sido registrados seguidos relatos de maus tratos a pacientes –gerando críticas de movimentos antimanicomiais–, são internados muitos dos dependentes brasileiros de álcool e drogas, os mesmos que Sônia Barros afirma que precisam ser atendidos na rede de atenção psicossocial sob seu comando.
A diretora também não quis opinar sobre tratamentos alternativos para pacientes de saúde mental –como o uso de cannabis e psicodélicos, por exemplo– nem sobre a chance de o uso dessas substâncias ser regulamentado pelo SUS (Sistema Único de Saúde). “Eu não saberia dizer”, afirma.
Em dezembro aconteceu a 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental –não ocorria desde 2010. Qual o significado disso e quais foram os diagnósticos mais urgentes do encontro?
A conferência foi convocada pelo Conselho Nacional de Saúde em novembro de 2020, mas em 2021 e 2022 não teve apoio do Ministério da Saúde. A nova gestão apoiou, e passamos a trabalhar conjuntamente com o Conselho Nacional de Saúde. Isso mostra a priorização que o Ministério da Saúde vem dando à gestão da saúde mental, que já foi demonstrada pela própria criação do Departamento de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas.
A conferência teve quatro dias, reuniu mais de 1.200 delegados –no total foram cerca de 2.500 pessoas. Ainda vamos fazer o relatório com a contribuição que as propostas vão trazer, mas as recomendações circulam sempre em torno de expansão de rede, qualificação de trabalhadores, recomposição de financiamento, inovações da rede.
Desde a reforma psiquiátrica [instituída com a lei 10.216, de 2001], parecia haver uma evolução, ainda que lenta, em políticas públicas sintonizadas com a reforma. Numa palestra recente, a senhora mencionou que houve uma mudança radical, uma regressão, no período de 2016 a 2022. O que ocorreu?
Também houve um apagão de dados, porque se tinha, até 2014, a publicação “Saúde Mental em Dados”, que todos podiam acompanhar no site do Ministério da Saúde, com números de serviços e de leitos, e isso deixou de existir. Também foram publicadas [no governo Bolsonaro] portarias que caracterizavam retrocessos, como a possibilidade de inscrição de novas clínicas psiquiátricas –ampliou-se o número–, criou-se equipes ambulatoriais, contrariando os princípios da reforma e o sentido, por exemplo, dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que têm a perspectiva do cuidado diário, de possibilidade de intervenção não só médica ou medicamentosa.
Já fizemos a revogação das portarias que eram mais características do retrocesso, e publicamos outras que mostram o avanço do processo da reforma. Nós retomamos a construção da política de saúde mental, expandindo aquilo que caracteriza a rede de atenção psicossocial, como o Caps, as residências terapêuticas, as unidades de acolhimento. Nós não estamos só assumindo no nome a política de álcool e drogas, nós também protegemos as ações que de fato caracterizam a possibilidade de atender essas pessoas.
Poderia fazer um balanço de seu primeiro ano no cargo? Do ponto de vista orçamentário e de estrutura, qual é a capacidade desse novo departamento?
Em 2023, tivemos de orçamento o que tinha sido deixado pela gestão anterior. Numa coordenação, como era antes, a estrutura é menor. O departamento amplia essas estruturas e as possibilidades de interlocução e desenvolvimento de projetos, precisa de maiores recursos. E além disso, [herdamos] o orçamento de uma gestão que não tinha o menor interesse na área de saúde mental, de álcool e outras drogas. Pelo contrário, foi feito tudo para reduzir e quase destruir essa política. Principalmente aquela relacionada à álcool e outras drogas. Nós tivemos apoio pleno do secretário Nésio Fernandes [de Atenção Primária à Saúde] e da ministra Nísia Trindade para colocar recursos para podermos caminhar e fazer algumas coisas.
A habilitação de novos serviços estava fechada. E esses serviços que caracterizam a reforma, como Caps, SRT [Serviços de Residência Terapêutica], unidades de acolhimento, não eram habilitados. O sistema para se pedir novos serviços estava fechado, nós reabrimos, e isso implica em recursos. Em meados do ano [2023], a gente teve uma recomposição do custeio de CAPs, de residências terapêuticas – há quase dez anos não tinha aumento. Isso significou um aporte de cerca de R$ 200 milhões para poder estimular que os municípios abram serviços, ampliem a rede. Assim, a gente amplia o acesso das pessoas que precisam desse serviço.
Estamos avançando com o projeto da capacitação permanente para os trabalhadores da rede. Além disso, nós tivemos no PAC 3 um valor de cerca de R$ 400 milhões para construção de cerca de 200 novos Caps no país nos próximos três anos.
Quantos leitos psiquiátricos ainda há no Brasil? Qual a meta?
O número de leitos em hospitais psiquiátricos especializados é de cerca de 11 mil e fração. Nos interessa ter leitos de saúde mental em hospital geral. Em 2023, habilitamos 159 novos destes leitos. É a questão da saúde mental tratada como qualquer outra questão de saúde. Pensamos sempre na integralidade, e os leitos de saúde mental fazem parte do problema de saúde de modo geral. Portanto, nos interessa ter leitos de retaguarda para o cuidado e liberdade. E temos os leitos dos Caps 3, tanto adultos como [para dependentes de] álcool e drogas.
Os [leitos] de hospitais especializados, de acordo com a lei 10.216, são leitos que devem progressivamente ir se extinguindo, porque a lei diz que prioritariamente o cuidado das pessoas com problema de saúde mental ou necessidade decorrente do uso de álcool e outras drogas deve ser na comunidade, no território. Então nós estamos expandindo a rede para dar conta disso. Estamos credenciando, cadastrando leitos nos hospitais gerais para fazer esse acolhimento que é intensivo, de curto tempo, para que a pessoa possa voltar para o seu vínculo no território.
O Conselho Nacional de Justiça instituiu uma política antimanicomial e publicou uma resolução sobre fechamento de hospitais de custódia. O que avançou e o que falta ser feito?
O CNJ publicou a resolução em fevereiro [de 2023], dando prazos para os fechamentos das portas de entrada dos hospitais de custódia e tratamentos psiquiátricos e para que as pessoas que estão lá possam sair. Estão seguindo uma lei maior, que é a lei 10.216. Depois disso, o CNJ começou a conversar com o Ministério da Saúde, e as ministras Rosa Weber [então presidente do CNJ, hoje aposentada] e Nísia Trindade assinaram um protocolo de intenções. A gente já vem fazendo o trabalho conjunto com CNJ e os Estados –porque a maioria deles tem hospital de custódia, tem enfermaria psiquiátricas dentro de presídios–, formando equipes de condução desse programa tanto do judiciário quanto da área de saúde, para que as pessoas possam ser recebidas na nossa rede de atenção psicossocial.
A senhora tem evitado falar diretamente sobre comunidades terapêuticas, alegando que elas estão no âmbito… [uma assessora interrompe a entrevista e tenta impedir a pergunta]
A posição é a seguinte. Comunidade terapêutica não é uma questão que está posta no Ministério da Saúde, porque esses dispositivos estão no Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social. Então, qualquer informação a respeito desses dispositivos tem que ser procurada lá.
Mas minha pergunta era justamente sobre isso…
Está respondido, então. Está respondido.
Há em curso no Brasil e no mundo uma epidemia de ansiedade e depressão e junto com ela o uso indiscriminado de ansiolíticos e psicotrópicos. Como políticas públicas podem enfrentar isso?
Entendemos que isso é derivado de determinantes socioculturais. O mundo passa por uma série de problemas muito graves, que foram revelados ou aumentados com a pandemia de Covid. Mas a questão permanece: populações inteiras que se deslocam dos seus países de origem, fome, falta de moradia. Tivemos uma crise do capitalismo e a questão do emprego está posta no mundo e no Brasil. Claro que a gente precisa melhorar a qualificação dos profissionais [de saúde] e não é só os que estão em serviço. Mas essas questões não têm de ser colocadas só como questões do cérebro ou do corpo, mas também dizem respeito aos determinantes sociais, ao uso indiscriminado de internet. É multifatorial. E nós vamos ter que enfrentar isso. Primeiro, os governos têm que tentar resolver a questão do emprego, da fome, da geração de renda, para que as pessoas possam ter uma vida um pouco mais tranquila.
E nós, na capacitação, na educação dos trabalhadores, da nossa rede, também abordando esses aspectos que são fundamentais para não resultar na medicalização, no uso excessivo de ansiolíticos e psicotrópicos. Nos consultórios privados, o uso de benzodiazepínicos, de ansiolíticos, talvez pudesse ser reduzido se as pessoas tivessem um tempo para escuta, para relação. E isso é fundamental, não só no nível da relação dos profissionais com a sua clientela, mas também na relação do dia a dia de todos nós. Termos escuta, tolerância, entender que existe diversidade, isso deve fazer parte dos encaminhamentos para que a gente não solucione –acho que é difícil você resolver definitivamente essa questão–, mas pelo menos reduza riscos de automedicação, de hipermedicação e de que a gente entenda tudo como um problema de sintomas e não um problema de contexto.
Raio-X
Sônia Barros
É diretora do Departamento de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da Secretaria de Atenção Especializada em Saúde do Ministério da Saúde.
Fez graduação em Enfermagem de Saúde Pública pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), com mestrado em enfermagem psiquiátrica e doutorado em enfermagem pela USP. É professora titular aposentada da Escola de Enfermagem da USP e professora sênior no Instituto de Estudos Avançados da USP, onde coordenou o Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Políticas Públicas de Saúde Mental. Em 2022, recebeu o Prêmio Nise da Silveira de Boas Práticas e Inclusão em Saúde Mental, concedido pela Câmara dos Deputados.