Uma equipe do Canadá com três brasileiros inovou testes clínicos de psicoterapia com psilocibina para depressão ao permitir mais de uma dose do psicodélico, em caso de recaída. Até aqui, estudos vinham empregando aplicações únicas ou doses múltiplas fixadas de antemão, não na medida da necessidade do paciente.
Foi um ensaio pequeno, com 30 voluntários recrutados numa das clínicas de cetamina da empresa Braxia Health. Outra inovação foi incluir pacientes ultra-resistentes, pessoas com depressão bipolar e comorbidades como abuso de substâncias e ideação suicida. Outros estudos excluíam esses casos mais complexos.
O artigo “Psicoterapia assistida por psilocibina para tratamento de depressão resistente: Um teste clínico aleatorizado avaliando doses repetidas de psilocibina” saiu quarta-feira (14) no periódico Med, do mesmo grupo editorial que publica a prestigiosa revista Cell.
Dos 30 participantes, 16 receberam tratamento imediato com psilocibina e 14 ficaram no grupo de controle, em lista de espera. Após duas semanas, os 14 também receberam a versão sintética do composto, fornecida pelo Instituto Usona, que liderou nos EUA um grande teste clínico com psilocibina, substância originalmente presente em cogumelos “mágicos” do gênero Psilocybe.
Cada paciente compareceu a quatro sessões de psicoterapia: uma semana antes, para preparação; duas no final de semana da dosagem (sábado) seguida de integração rápida (domingo), e outra de integração uma semana depois. Na integração paciente e terapeuta conversam sobre sentimentos, visões e lembranças afloradas com a experiência psicodélica.
Os participantes foram acompanhados por 24 semanas. Havia abertura para repetir as doses de 25 miligramas até duas vezes, entre a décima e a vigésima semana, caso houvesse piora nos sintomas.
Comparando o grupo inicial com o da lista de espera, houve na média redução de dez pontos na métrica de gravidade da Montgomery-Åsberg Depression Rating Scale (MADRS). Os participantes foram do patamar de 30 para o de 20 pontos numa escala que vai até 60 (com a faixa de depressão grave entre 35 e 60), e as doses repetidas se associaram a novas reduções.
O teste todo ocorreu de novembro de 2021 a julho de 2023. Teve como líder Joshua Rosenblat, da Universidade de Toronto, que depois se tornaria diretor médico da Braxia.
“O que eu mais gostei foi de ver o efeito da psilocibina, na prática, uma experiência que vai além dos números, da escala de depressão. Ver o que a pessoa diz sobre a experiência, foi o que achei mais interessante”, diz Elisa Brietzke, psiquiatra da Queen’s University em Ontario, que atuou como terapeuta na pesquisa.
Além dela, havia dois outros brasileiros no time. Fabiano Gomes, originalmente de Brasília, trabalha hoje na Universidade McMaster. Rodrigo Mansur, da Universidade de Toronto, foi o primeiro aluno de doutorado de Brietzke na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
A médica explica a opção de trabalhar no Canadá por ser um país avançado na área de transtornos do humor, especialmente transtorno bipolar. Um centro de referência para o mundo, onde se elaboram as diretrizes adotadas no mundo inteiro, assinala.
“É um país mais avançado que o Brasil, legalizou a maconha já há sete anos. Fez muita pesquisa com cannabis, aceita com mais naturalidade quando falamos em fazer pesquisa com uma substância usada recreativamente, sem o peso moral que tem no Brasil.”
A psiquiatra conta que tinha muitos pacientes no Brasil que em algum momento da vida usaram ayahuasca. Via no consultório algumas pessoas que tinham melhora com ayahuasca.
“Embora não conhecesse a psilocibina, eu já tinha uma ideia de que psicodélicos possivelmente teriam algum efeito [terapêutico]. O meu interesse em psicodélicos veio de observar pacientes que eu via no Brasil e faziam uso religioso, me tornei curiosa em estudar essa área a partir daí.”
O estudo canadense teve origem no consultório de Rosenblat, procurado por uma paciente interessada em tentar psicodélicos como tratamento. Ela já tinha sido medicada com várias combinações de medicamentos. Até eletroconvulsoterapia encarou, sempre sem resultado.
O médico pediu à Health Canada, equivalente da Anvisa naquele país, uma licença excepcional para receitar psilocibina. Recebeu então a sugestão de realizar um teste clínico preliminar com a substância, de modo a gerar dados para obter recursos e realizar um ensaio maior.
Com o estudo ora publicado já em andamento, o Canadá criou um programa de acesso especial a psilocibina. Cumprindo alguma burocracia, como no caso da Austrália, médicos podem obter o psicodélico para seus pacientes, gratuitamente, em casos muito particulares, como doença terminal e ideação suicida.
No curso do estudo, a psiquiatra foi diagnosticada com um tumor, condição que Brietzke informa já na apresentação de seu perfil na rede social X (antigo Twitter): “Médica psiquiatra, professora, pesquisadora e aspirante a escritora. Vencendo um câncer de mama. Com os pés no Canadá e o coração no Brasil”.
Afirma, aberta e pragmaticamente, que a doença não prejudicou sua participação no teste clínico: “[A questão pessoal de saúde] não afetou nada. A gente fez todo o treinamento e toda a coleta de dados antes de eu descobrir que estava doente”.
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AVISO AOS NAVEGANTES – Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.
Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem “Cogumelos Livres” na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.
Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira”.