A demora em buscar atendimento médico por parte do paciente, que subestima o potencial de gravidade da dengue, e a desorganização e a superlotação da rede de saúde, que não prioriza e não acompanha de forma adequada os suspeitos da doença.
Essas estão entre as principais razões associadas às mortes por dengue no país, de acordo com recente artigo publicado pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz que analisa os óbitos por dengue.
Neste ano, o Brasil já registrou mais de 2,6 milhões de casos prováveis de dengue, com 991 mortes confirmadas e outras 1.483 ainda estão sendo investigadas, segundo dados divulgados no último sábado (30).
Para os pesquisadores da Fiocruz, a dengue em si não mata, o que mata é a desassistência e a desatenção ao potencial agravamento que os pacientes podem apresentar. “Esse momento, quando negligenciado, leva aos casos graves e aos óbitos evitáveis”, afirmam.
Relatos de famílias pelo país que perderam familiares por dengue atestam as conclusões dos pesquisadores. A morte de Sofia, 4, de Barra Velha (SC), no último domingo (31), é um dos casos.
Segundo a mãe, Ana Maria Pereira, a menina passou três vezes pelo pronto-atendimento da cidade e não recebeu atendimento adequado. A busca começou no dia 25 de março, quando Sofia apresentava febre de 39,7°C.
“Deram ficha laranja, tinha que ter sido atendida em 10 minutos, mas esperamos muito. Quando viram que ela ia convulsionar, aplicaram compressa de água fria e deram medicação.”
A mãe conta que a médica pediu exame de dengue, mas não havia o teste na unidade. “Pediram meu número para ver o dia em que iam marcar.”
No dia seguinte, a família decidiu fazer o exame de dengue em uma farmácia. O resultado foi positivo. Com barriga e olhos muito inchados, a menina foi levada de volta à unidade de saúde.
“Ela passou pelo médico, que deu antibiótico. Disse que era gastroenterite bacteriana, mas não pediu nenhum exame.”
Na sexta (29), de volta à unidade, a criança já chegou com parada cardiorrespiratória e foi levada às pressas para a UTI do Hospital São José em Jaraguá do Sul, onde morreu.
A Secretaria Municipal da Saúde informou que instaurou sindicância para apurar eventuais irregularidades no atendimento e afastou o médico.
Segundo Rivaldo Venâncio da Cunha, médico infectologista, pesquisador da Fiocruz e um dos autores do artigo, a morte por dengue é evitável na grande maioria dos casos.
“Mas há erros cometidos, seja pelos doentes e seus familiares seja pela rede de atenção, que levam à perda de oportunidade de cuidados em tempo hábil para preservar a vida”, diz ele.
Da parte das famílias, o principal erro é subestimar a dengue e não procurar rapidamente um serviço de saúde. “Quando procuram, já está muito grave”, afirma.
Mas também é comum os pacientes e seus familiares terem consciência do potencial de gravidade da dengue, procurarem uma unidade de saúde e a encontram superlotada.
“O doente espera uma, duas, três, quatro, cinco horas por um primeiro atendimento. Por alguma razão, a pessoa se cansa, vai embora e aquela oportunidade é perdida. Quando essa pessoa retorna três, quatro dias depois, está muito grave e perde a vida.”
Ainda há uma terceira situação, segundo médico. Aqueles casos em que a pessoa recebe o atendimento, mas a gravidade do quadro clínico ou ainda não está expressa ou, se está, não é percebida pelos profissionais de saúde.
“É raro vermos uma morte por dengue em que a pessoa foi atendida uma única vez. Em geral, a pessoa passa várias vezes pelo serviço de saúde”, afirma.
De acordo com o infectologista André de Siqueira, pesquisador do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (Fiocruz) e também autor do estudo, esses erros assistenciais foram observados em epidemias anteriores de dengue e continuam na atual.
“Falta preparo dos profissionais e organização da rede assistencial para manejar o aumento da demanda com a necessidade de atenção individual nos casos de dengue e instituir a terapêutica correta o mais célere possível.”
A demora dentro dos serviços contribui para as falhas e o agravamento dos casos. “Há relatos de pessoas que ficam sete horas dentro de uma unidade, na sala de espera, sem receber um copo d’água. Ficam agravando dentro de uma unidade. Isso é inconcebível.” A hidratação nesses casos é fundamental.
Para os pesquisadores, é importante que estados e municípios investiguem as circunstâncias das internações e das mortes por dengue e atuem de forma rápida para corrigir eventuais falhas assistenciais e, assim, reduzir a taxa de óbitos e complicações.
“Precisamos de uma vigilância clínica mais proativa de toda a trajetória desses casos. Às vezes, a pessoa que faleceu por dengue passou por duas, três unidades antes de chegar naquela que morreu. Nesse processo, houve falhas de reconhecimento da gravidade e de tratamentos adequados”, diz Siqueira.
Na opinião da médica Fátima Marinho, pesquisadora senior da Vital Strategies e que tem estudado as mortes por dengue, a terceirização de profissionais de emergência nos hospitais e nas UPAs (unidades de pronto-atendimento) tem levado a uma piora na assistência de urgência. “Muita gente despreparada, sem treinamento.”
Uma outra questão que vem sendo investigada pelas equipes que atuam na vigilância dos óbitos, segundo Marinho, é o impacto das doenças crônicas e das sequelas da Covid na piora dos quadros. “A discussão atual é se a dengue foi causa básica [das mortes] ou causa associada.”