Nossas crianças estão bem mais argumentativas, críticas e, no bom sentido, interessadas em razões do que as gerações anteriores. Elas não estão mais inteligentes que antes, apenas aprendemos dar valor à curiosidade que as caracteriza desde sempre. Afinal, é para elas que nos esforçamos por justificar que o mundo e o futuro valem a pena. É por elas que nós escondemos nossa disposição agressiva a chegar logos nos “finalmentes”.
As crianças, me refiro às com menos de 10 anos de idade, são ainda uma das poucas posições nas quais seguimos uma espécie de autoridade espontânea e representativa. Ou seja, antes de se transformarem, com a nossa ajuda, em adolescentes que tudo sabem (porque atribuímos a eles o saber sobre a verdade de nossas próprias fantasias), as crianças precisam falar e nunca houve uma geração antes que escutou tanto as crianças quanto a nossa.
Crianças pequenas sabem brincar, e a fala produtiva possui em grande medida a estrutura de uma brincadeira. Não porque seja inconsequente, aliás, a criança nunca é inconsequente em seu brincar. Para ela aquilo é o que há de mais sério. Um equivalente disso, entre adultos se poderia encontrar em certo tipo de literatura menor. Não aquela que está comprometida em exibir o ego arguto do autor, mas aquela que está comprometida com o mistério poético da palavra, e do silêncio.
Vejo um tanto desta atitude em alguns professores, aqueles que ainda não temem dizer seu nome. Boa parte dos que se engajam nesta tarefa em nossos dias tem um compromisso com a palavra que é de outra natureza. Não penso que esta atitude ética, que Lacan chamava de “ética do bem dizer”, seja coisa de profissionais ou de pessoas cultas. Há gente que teme esta disposição continuada a encontrar o que dizer, e de dizê-lo melhor e de se transformar procurando a melhor forma de fazê-lo. É o que se pode esperar da psicanálise, mas também do que alguns autores da filosofia chamam de ética da amizade.
No fundo, para recuperar o valor da palavra e da escuta, devemos antes de tudo nos escutarmos. No fundo, o que um psicanalista faz é atuar como Sancho Pança para seu paciente, que como Dom Quixote, diz a verdade, mas não onde ele pensa que ela está. E nós como Sancho apenas apontamos: escuta bem o que você disse.
Estamos tão fanáticos pelo desejo de nos fazermos escutar pelo outro que esquecemos que a escuta primeira é a escuta de si. Nela percebemos que sempre estamos a dizer mais ou menos do que queríamos dizer. Nela percebemos que o “querer dizer” não “entra em campo” (no sentido do ditado futebolístico que reza que o “se” não joga), e que a confusão de línguas com o outro começa pela impossibilidade de sermos transparentes a nós mesmos. É por isso que quando vamos falar aquilo que estava tão claro muitas vezes nos surpreendemos porque sai tão completamente outra coisa. É por isso que é tão difícil nos separarmos ou transformarmos isso que a psicanálise chama de discurso, ou seja, uma certa disposição a nos colocarmos em uma fala que já foi tão falada que se torna previsível e constituída.