Mesmo com o Alzheimer estagnado e compreendendo de forma razoável a situação, o gaúcho Claro Neves, 82 anos, ainda esquece que seu lar não estará do mesmo jeito quando a água, que foi até o telhado da casa dele em Canoas (RS), baixar.
O aposentado foi resgatado dentro de uma caixa d’água e, mesmo tendo sido levado para a casa de familiares, se sente perdido depois do que aconteceu.
“Esse desastre ambiental e a quebra da rotina dele trouxeram uma confusão mental ainda maior. Isso o afetou bastante, ele saiu de casa à força, em função das águas”, relata a filha, a administradora de empresas Jocilaine Stein, 51, que vive em São Leopoldo (RS), cidade menos atingida pelas enchentes.
Leandro Minozzo, geriatra atuante no RS e professor do curso de medicina da Universidade Feevale, relata que houve alta da procura de familiares e instituições de longa permanência para idosos (ILPI) por atendimento para os pacientes.
“Houve um momento considerável de demanda de receitas médicas por quem teve a casa inundada ou teve comportamentos alterados. O grau de luto e de estresse em famílias que convivem com demência é elevado. Muitos [pacientes] ficaram com o seu comportamento piorado, querendo voltar ou não reconhecendo onde estão”, diz o médico.
Agitação, alteração do sono, perda da adesão ao tratamento pela interrupção do tratamento medicamentoso por perda dos remédios ou dificuldade de reposição são outros problemas intensificados nesta população. Integrante do grupo de trabalho da Abraz (Associação Brasileira de Alzheimer) sobre políticas públicas, o geriatra alerta que ainda há o frio e a dengue na região metropolitana de Porto Alegre.
“Muitos idosos adoecendo, a gente tendo que fazer esse tipo de atendimento por sintomas diversos. Tem quem teve contato com a água [da chuva], quem não está conseguindo tomar medicamento para diabetes, pressão alta. E, com demência, piora a situação, essa pessoa pode adoecer, demorar para ser atendida e acabar hospitalizada”, diz Minozzo.
A demora em oferecer orientações e apoio especializado às famílias do portador foi outro agravante nesse momento. “Isso é sinal da falta de uma política pública nacional e estadual para cuidar melhor dessas pessoas. Nos abrigos, [em geral], por exemplo, não se sabe qual é o idoso que tem demência, qual não tem —e isso faz toda a diferença. Eles deveriam ser prioridade”, aponta o médico.
Silvana Poltronieri Lamers, psicanalista, psicopedagoga e presidente Abraz/RS, diz que ainda não há estimativas de quantas perdas de portadores em fase avançada serão contabilizadas após a tragédia.
“Um idoso em situação de fragilidade e ainda passar pela perda de seu lar e referências é devastador. Temos vários relatos de idosos que chegam sem lembrar seus nomes e onde estavam”, conta Lamers.
A falta do contexto de cuidados em uma situação de desastre amplia os riscos para o portador de Alzheimer, que, devido à perda de memória característica, pode perambular sem rumo, diz. Ela aponta que operacionalizar um local para abrigar somente idosos deve trazer mais humanização para quem precisa de atenção específica.
É urgente dar atenção especial para pessoas com doenças degenerativas, bem como aos cuidadores, como a inclusão de atividades de estímulo e alimentação correta para que não haja perdas cognitivas. “Temos condições de fazer um tratamento particular e meus pais estão na minha casa, mas quantos outros não têm [isso] hoje?”, afirma Stein.
O engenheiro mecânico Daniel da Rosa München, 53, vive em Porto Alegre e tem diagnóstico de Alzheimer desde novembro. Além da falta de memória e certa confusão mental, ele relata que há episódios de desorientação quando está na rua, sono intenso e perda de noção de tempo.
Mesmo sem poder dirigir ou ficar sozinho, ele tenta manter certo grau de autonomia executando sem supervisão tarefas como lavar louça ou ir à academia.
Após as chuvas, entretanto, a falta de água e energia têm atrapalhado as rotinas e o impedido de realizar “as coisas que fazia em casa.” Ele e a família conseguiram permanecer onde vivem, mas agora buscam se adaptar à perda desses estímulos no dia a dia.
Nem todos, porém, conseguem lidar com a doença com tanta autonomia como München.
Segundo Minozzo, pessoas com Alzheimer em determinadas fases podem ser menos flexíveis e terem muita dificuldade em linguagem e comunicação, tendo que ser convencidas do que precisam fazer pelos cuidadores. As enchentes, entretanto, trouxeram uma carga forte de estresse extra para esses familiares e profissionais.
“Muitos tiveram perdas financeiras significativas, algumas famílias ainda estão com 1,5 metro de água dentro de casa. Muitas têm dificuldade em pedir ajuda. Então se você conhece alguém com Alzheimer, se antecipe, pergunte o que a pessoa está precisando. Quem quer ajudar precisa ser proativo”, diz o geriatra.
Em Porto Alegre, a Cruz Vermelha, em parceria com os conselhos de direito do idoso (estadual e municipal) e sociedade civil, conseguiu montar uma estrutura em um prédio só para receber desalojados acima de 60 anos.
Chamado Abrigo60+ Emergencial de Porto Alegre, o espaço fica na avenida João Pessoa, 1.315, e conta com equipe de médicos, enfermagem, cuidadores, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, assistentes sociais e voluntários 24 horas por dia, sob a coordenação da médica e professora Michelle Clos.
Posteriormente, também recebeu apoio da Prefeitura e do Ministério Público. O atendimento tem sido feito por voluntários e entidades como a Frente Nacional de Fortalecimento à Ilpi (Frente-Ilpi).
O local tem capacidade para 40 pessoas e, no primeiro dia, já recebeu 19, mas os voluntários ainda aguardam a estrutura de segurança solicitada ao município. Doações e informações pelo telefone (51) 9116-806.