Quando Claudia Piñeiro escreveu seu “Catedrais”, sobre o assassinato da jovem Ana, que havia feito um aborto, ela não pensava em fazer um livro político.
O livro, que chegou ao Brasil em abril, logo após o CFM (Conselho Federal de Medicina) investir contra o aborto tardio em casos de estupro, narra a história da jovem por vários pontos de vista. A ideia, segundo Piñeiro, não era fazer um quebra-cabeças, mas propor um jogo de responsabilidade.
“Ao colocar a narração em primeira pessoa, pude mostrar o quanto cada um assumia responsabilidade ou não sobre o ocorrido com Ana. Quase todos têm algo a ver”, diz a autora.
Cada capítulo do livro de cerca de 250 páginas é narrado da perspectiva de um personagem da trama, incluindo familiares de Ana, seu pai, sua irmã e seu sobrinho que nem era nascido quando ela morreu. O resultado é um coral de memórias que formam um mosaico do que pode ter acontecido com Ana, de quem ela era.
Em um cenário diferente do daqui, na Argentina, o livro foi lançado em 2020, ano em que o aborto foi descriminalizado no país.
Piñeiro, ativa na defesa do direito à interrupção da gravidez, veio a São Paulo para a Feira do Livro, no Pacaembu, para uma mesa que divide neste domingo com a brasileira Tatiana Salem Levy, em meio ao turbilhão causado pelo PL 1904 de Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que equipara a pena para interrupções acima de 22 semanas de gravidez resultante de estupro à reclusão prevista em caso de homicídio simples.
“Já passamos por isso na Argentina, mas isso não significa que esteja tudo resolvido. Sempre aparecem vozes que querem retroceder. Aprendemos a importância da solidariedade latinoamericana. A luta das mulheres tem que ser transversal em todos os países.”
O aborto é tema recorrente na obra de Piñeiro, que tem ares de romance policial e thriller, e se soma a outros temas sociais, como violência contra a mulher e feminicídio. “Eu sou a mesma pessoa como escritora, como cidadã e como militante de certas causas”, diz. “É quase impossível escrever sem que essas partes da minha personalidade me atravessem.”
E os temas que a comovem, diz ela, tem a ver com a sociedade contemporânea, que acaba figurando como personagem em seus livros. “Para contar o que aconteceu com Ana, tenho que narrar a sociedade argentina neste momento. Então o social é presente porque é para ele que eu olho quando conto uma história. Mas não é voluntário. Não digo ‘agora é importante falar desse tema na Argentina, então vou trazê-lo’.”
Uma das argentinas mais traduzidas do país, atrás de Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, Piñeiro não vê em suas obras uma responsabilidade educativa —nem as escreve com esse intuito. “Escrevo o que quero, não acho que a literatura tenha função de educar ninguém”, afirma.
Mas a autora não nega que a ficção tenha um potencial de sensibilizar para determinadas causas. “Há pessoas nas quais não se chega com uma mensagem direta, técnica, jurídica, filosófica, médica. Às vezes é difícil explicar por meio das ciências mais duras que uma mulher que está grávida sem desejar tem o direito de dizer que não quer ser mãe naquele momento. Um filme ou um livro podem atingir outros públicos.”
Piñeiro também é cética quanto à capacidade de uma obra de mudar uma situação social, mas já viveu na prática sua capacidade de construir novas perspectivas. “Acredito que formamos nossa cabeça em função de várias coisas. Muitos filmes e livros fazem parte disso”, diz. “Muita gente que era contra o aborto na Argentina, depois de ler ‘Catedrais’, me disse que as fiz pensar muito com o livro.”
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