Para muitos, a visão sobre a não monogamia é sair, beijar e fazer sexo com várias pessoas. Mas há quem mostre na prática que o assunto vai além, envolvendo autonomia pessoal, família e filhos —universos que parecem excludentes quando se fala desse tipo de relacionamento, mas não são.
Em um aspecto político, a não monogamia questiona valores e normas vigentes. Foi esse pensamento que atraiu a professora de história Gabrielle dal Molin, 36, a esse tipo de relacionamento em 2011, por meio de blogs e publicações sobre amor livre com perspectiva anarquista.
Gabrielle estava saindo de um relacionamento monogâmico de longa data quando começou um novo relacionamento em 2012 com seu atual companheiro, ambos interessados em explorar a não monogamia.
Até que ela engravidou, em 2018, enquanto também se relacionava com uma mulher. Nesse período, se viu diante do desafio de uma gravidez não planejada e começou a produzir conteúdo sobre não monogamia a fim de compartilhar suas experiências e encontrar uma rede de apoio mais ampla. “Eu comecei a escrever para botar um pouco isso para fora”, diz a criadora da página Casa Não Mono. “Foi ótimo porque, ao começar a produzir conteúdo, eu conheci muitas outras pessoas, como famílias que viviam a não monogamia.”
Gabrielle sentia falta dessa referência e achou importante se tornar uma para outras mães que vivem em uma perspectiva não monogâmica. Ela também queria criar uma família estendida. “Eu sempre busquei, nesse tempo, construir essa rede que não é só uma rede de apoio, mas de afetos”, afirma.
Os debates em torno da não monogamia são recentes e, por isso, são poucos os exemplos. “É um novo paradigma”, diz Adê Monteiro, psicóloga, sexóloga e terapeuta de casais. Ela afirma que os questionamentos são vários: Eu posso amar mais de uma pessoa, então posso morar com mais de uma pessoa? Como vai ser ter filhos com mais de uma pessoa? Como vai funcionar essa família e o plano de saúde e a licença-maternidade? “É um campo totalmente desconhecido.”
Monteiro, que também é doula e mãe de dois filhos, criou a página no Instagram Reflexões & Conexões Não Mono em 2018, e estuda o tema desde 2008, quando morava na Irlanda. Ela se identifica com a não monogamia ética política, que foca a crítica à estrutura monogâmica e capitalista. Segundo ela, o movimento desconstrói a ideia de família nuclear, centrada no pai e, principalmente, na mãe.
Ela cita o livro “Descolonizando Afetos”, da Geni Nuñez, que mostra como os povos indígenas já não tinham relações monogâmicas. “Os filhos eram filhos da tribos, não eram filhos de um capital”, diz. “Não é um conceito novo. A gente está retomando, recuperando essa ideia de liberdade das relações.”
Pensar para além do núcleo pai, mãe e filhos, segundo Monteiro, vai ao encontro de pautas feministas. “Uma das principais pautas do feminismo é a justa divisão do trabalho doméstico, de que a mulher não fica sobrecarregada, com trabalho doméstico e de cuidado.”
Gabrielle endossa essa perspectiva. Ela vê a não monogamia como uma reconfiguração da sociedade para resgatar a ideia de comunidade e melhorar a vida das mães, descentralizando o cuidado.
“Criar uma criança pensando fora disso [padrões monogâmicos], com outros referenciais, com outro discurso, sempre é um desafio”, diz. Ela tem ao redor relações que ultrapassam os vínculos afetivos-sexuais que a ajudam a criar sua filha. Mas não nega que os desafios são diários.
Ilana Eleá, psicóloga, educadora e sexóloga, fala dos estigmas e aceitação social que a não monogamia enfrenta, podendo afetar aspectos como emprego e guarda de filhos. “Todo o processo de não monogamia consensual é como a saída do armário”, diz ela, que é autora de dois livros de ficção sobre poliamor e não monogamia, “Emma e o Sexo” e “Emma e o Poliamor”.
Para Eleá, investigar a história das relações ajuda a entender como conceitos de amor e monogamia foram moldados por poder, religião e mensagens sociais. “Tem gente que pode perder o emprego, tem relatos de gente que corre o risco de perder a guarda de filho, então não é uma coisa tão fácil.”
É o que mostram estudos de Elisabeth Sheff, especialista em poliamor e famílias de minorias sexuais com crianças, publicados na Psychology Today. “Em termos de guarda dos filhos, as famílias poliamorosas estão numa posição muito semelhante à dos pais em relações do mesmo sexo antes da década de 1990”, ela escreveu. “Os pais gays da época e os pais poliamorosos agora são considerados aberrações raras e estranhas na criação de filhos que, é claro, devem ser perigosas para as crianças.”
No Brasil, é proibido a relação estável com mais de uma pessoa, por exemplo. Logo, para Monteiro, pessoas não monogâmicas vivem “debaixo dos panos” e as leis não vão mudar enquanto não houver reivindicações. “Eu acho que as lutas vêm e só assim surgem as leis que possam nos atender. No momento, o nosso paradigma é monogâmico, é o que é aceito e pregado na nossa sociedade.”
Outro desafio é contar para filhos e família sobre ser não monogâmico. Ilana e seu marido, com quem decidiu abrir o casamento depois de dez anos juntos, lidaram com reações diversas da família ao revelarem a forma como iriam se relacionar. Ela conta que a reação inicial do cunhado foi de tristeza porque associou a abertura do casamento ao fim do relacionamento.
Abordar a não monogamia em relações longas e com filhos, ela afirma, requer consideração cuidadosa e comunicação aberta com todos os envolvidos. Monteiro afirma que trabalha com seus pacientes a noção de que a relação mais importante da sua vida é consigo mesmo. “Só sabendo o que é importante para mim, o que eu valorizo na minha vida e nas minhas relações é que eu posso expressar isso para as pessoas.”
Como parte da iniciativa Todas, a Folha presenteia mulheres com três meses de assinatura digital grátis