No início de julho deste ano, apresentando enjoo, fraqueza e manchas vermelhas na pele, o especialista em eventos automobilísticos Fábio Greco, 37, pensou que estava com dengue. No entanto, após alguns exames, foi diagnosticado com insuficiência renal em estágio avançado. Isso implicaria passar 12 horas semanais, indefinidamente, ligado a uma máquina de hemodiálise, e entrar na fila para obter um novo rim. Para intensificar ainda mais o momento conturbado, o diagnóstico coincidiu com o anúncio da gravidez de Vicente (“aquele que vence”), o primeiro filho de Fábio e sua esposa.
A mãe de Fábio, a empresária Patrícia Renófio Greco, 59, era compatível e estava disposta a doar um de seus dois rins para o filho. “Eu não tive dúvida em nenhum momento. Eu queria muito ser a doadora. Eu pensava que a doação só podia ser feita até os 60 anos, mas o médico disse que a idade não era problema.”
O maior volume de órgãos para transplante vem de doadores cadáveres, mas, em alguns casos, como o de rim, é possível que haja doação entre parentes. A doação de pais para filhos, inclusive, é considerada uma das mais adequadas, tanto do ponto de vista ético quanto prognóstico.
O fator mais importante para o sucesso do procedimento é a compatibilidade imunogenética, ou seja, a capacidade de um órgão ou tecido se encaixar no novo organismo sem ativar em demasia o sistema imunológico do receptor, o que pode provocar rejeição. Além da compatibilidade sanguínea, Patrícia e Fábio eram também imunocompatíveis, ou seja o sistema imunológico do filho aceitaria bem o órgão da mãe, com baixíssima probabilidade de rejeição.
Quando não há possibilidade de doação entre pessoas vivas, a única alternativa é aguardar um doador cadáver. Quanto maior for o grau de compatibilidade, maior a chance de adequado funcionamento do órgão e menor a quantidade de drogas imunossupressoras —que têm de ser tomadas por toda a vida.
A sorte de Fábio era que Patrícia, além da imunocompatiblidade, não tinha contraindicações, como diabetes, obesidade, hipertensão ou outras condições que naturalmente geram sobrecarga e desgaste nos órgãos, responsáveis por filtrar as impurezas do sangue e eliminá-las pela urina.
“Eu já pensei muitas vezes nessa espera de quem aguarda para fazer o transplante. Eu já criei meus filhos. Se tivesse que ser eu ligada a uma máquina três vezes por semana, não seria um problema. Já vivi muita coisa”, diz Patrícia. A doação aconteceu no dia 31 de agosto, no Hospital do Rim, em São Paulo, e ambos se recuperam bem.
Entre os cuidados que o doador de rim precisa ter, assim como o receptor, está evitar o uso de medicamentos aos quais o órgão é particularmente sensível, como alguns anti-inflamatórios. Alguns alimentos, como a carambola, que também agridem o órgão, devem ser eliminados da dieta. Periodicamente, a função do rim remanescente é averiguada por meio de exames, como a dosagem sanguínea de creatinina —o acúmulo dela em níveis altos pode indicar perda da função renal.
Já o receptor precisa de um acompanhamento ainda mais próximo, com consultas periódicas para avaliar a função do órgão, o grau de rejeição e ajustar a dose de medicamentos. Pode ser necessário, inclusive, realizar biópsias. Após algumas semanas, pode-se voltar às atividades normais, respeitadas as limitações.
Para Fábio, além da gratidão pela mãe, que o fez “nascer de novo”, como diz, o momento é de renovação de uma consciência que já tinha. “Eu já tinha dito para a minha família que, se eu tivesse morte cerebral, era para doar meus órgãos. Eu falo para todo mundo que tem que doar. A gente não leva nada daqui, mas pode salvar muitas vidas.”
“Vou poder curtir muito meu próximo neto, e meu filho vai viver plenamente essa nova fase da vida dele”, diz a mãe.
José Medina Pestana, médico nefrologista e superintendente do Hospital do Rim, instituição de referência nacional e internacional, onde são feitos de 900 a mil transplantes por ano, explica que, graças ao avanço na técnica de hemodiálise, é mais difícil que uma pessoa morra somente por causa da falta de órgãos. Hoje há mais de 41 mil pessoas na fila por um rim, num universo de mais de 44 mil pacientes à espera por órgãos sólidos (rim, fígado, coração, pâncreas/rim, pulmão, pâncreas e multivisceral).
“A máquina de hemodiálise dá ao paciente uma qualidade de vida muito razoável: a pessoa trabalha, vai dirigindo, exceto se ela tiver diabetes ou for extremamente obesa. Se a pessoa tiver diabetes, que levou a problemas coronarianos ou vasculares, a sobrevida em diálise é menor. O transplante é melhor que a diálise, mas a diálise, por si só, não faz a pessoa morrer mais rápido; o que causa isso são as condições associadas, como diabetes e complicações cardiovasculares.”
Segundo Medina, o aumento proporcional de doações advindas de cadáveres (chegando a 85% no ano de 2023, segundo o Ministério da Saúde) mostra um “amadurecimento no conceito de doação de órgãos no país”. No entanto, ainda existem barreiras que impedem que o número de doações seja maior.
Uma delas é a baixa notificação de potenciais doadores —pessoas com morte encefálica cujos órgãos tenham esse potencial— pelos profissionais de saúde. “Só aí daria para dobrar o número de transplantes”, avalia.
Francisco Monteiro, coordenador da Central de Transplantes do Estado de São Paulo, relata que a taxa de doação no Paraná é de 40 doadores por milhão de habitantes, enquanto no estado de São Paulo a cifra é de 25 doadores por milhão de habitantes, denotando uma maior eficiência do sistema de notificação paranaense.
Outra barreira é a recusa familiar, que chegou a 42,4% em 2023, também segundo o Ministério da Saúde.
Este último gargalo, especialmente, pode ser contornado por meio da manifestação à família do desejo de ser um doador. “Quando a família nega a doação, não é necessariamente por questões religiosas ou culturais; é porque a pessoa falecida não manifestou claramente esse desejo em vida”, diz Medina.
“O ato de conversar com os parentes mais próximos sobre o desejo de ser doador ajuda a família a tomar uma decisão nesse momento tão crítico”, afirma Monteiro.
Um fator que pode contribuir, diz o coordenador estadual, é a abordagem e o acolhimento dos profissionais de saúde à família. “Se um paciente foi muito bem assistido, essa família provavelmente vai ter uma maior aceitabilidade, diferentemente daquela família que porventura chegou no pronto-socorro onde o atendimento demorou ou quando não houve comunicação adequada com os profissionais.”
Além do rim, outra possibilidade de doação ainda em vida é a de medula óssea. A contadora Rhudiany de Souza, 35, foi a doadora de medula para seu irmão, Márcio Luiz, 25, após ele ser diagnosticado com uma leucemia cuja única opção de tratamento era justamente receber as células de um doador, a fim de reconstruir o sistema de defesa do organismo.
Uma história familiar contribuiu para que a decisão fosse rápida. “Minha cunhada, irmã do meu marido, morreu enquanto aguardava por um transplante de rim. Ele queria muito ter conseguido doar um rim para ela.”
“Quando me deparei nessa situação, prontamente já assumi essa função. E Deus foi muito bom conosco: eu e minha irmã tivemos uma boa resposta em relação à compatibilidade”, relata. O transplante aconteceu no dia 4 de julho no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
A medula doada é completamente restituída depois de algumas semanas, sendo que eventuais complicações estão mais ligadas ao procedimento cirúrgico propriamente dito, como dores locais, náusea e fadiga. “Já estou de volta às atividades normais e à academia”, relata Rhudiany.
“Incentivar as pessoas a doarem sangue e se cadastrarem no Redome como doadoras de medula é fundamental. É muito importante as pessoas entenderem que doar medula é um ato de amor”, diz.
O Redome é o Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea, ligado ao Inca (Instituto Nacional de Câncer), e o cadastro de potenciais doadores é feito em hemocentros.