A sociedade é muito mais permissiva com o vício no trabalho ou de medicamentos prescritos do que com problemas relacionados ao uso de drogas, que levam à marginalização. Mas a abundância existente hoje é o que faz com que muitas pessoas sejam levadas ao comportamento aditivo.
Diante disso, entender os mecanismos por trás do vício é complexo, pois ele envolve fatores biológicos —predisposição—, psicológicos —doenças mentais préexistentes— e sociais —contexto de vulnerabilidade.
Para a psiquiatra americana e professora da Universidade Stanford, Anna Lembke, há um comportamento hipócrita de parte da sociedade que recrimina a dependência em drogas ilegais mas é permissiva com outras substâncias também prejudiciais, como nicotina e álcool.
“É uma reflexão interessante sobre quais tipos de dependências são estigmatizados e quais não são. Existe todo um conjunto de dependências que são altamente estigmatizadas, como sexo e pornografia, e outras não, como o vício no trabalho. Os heróis modernos são basicamente pessoas que nunca param de trabalhar”, disse à Folha, em uma entrevista durante sua passagem ao Brasil para o Fronteiras do Pensamento.
Lembke possui dois livros que são um absoluto sucesso de público em todo o mundo, “Nação Dopamina”, em que relata como vivemos em um mundo onde o excesso do prazer nos deixa infelizes, e “Nação Tarja Preta”, que aborda a crise de opioides nos Estados Unidos.
Ela conversou com a reportagem sobre os avanços da neurociência do vício, medidas preventivas que os governantes podem tomar para ajudar dependentes e como enfrentar o mais novo vício social, que afeta principalmente os mais jovens: o vício em redes sociais.
Dra. Lembke, seu livro “Nação Dopamina” fala do “paradoxo da abundância”. Poderia explicar o que é isso e se existe uma forma simples de prevenir a dependência?
O paradoxo da abundância descreve o fenômeno pelo qual, apesar de termos cada vez mais excesso no mundo, estamos cada vez menos felizes. Essa é a parte paradoxal dele.
A “superabundância” é um fator estressor para o cérebro humano, porque nosso cérebro evoluiu para uma vida em escassez, e não abundância. Como resultado, precisamos criar um mundo dentro de um mundo, ou seja, barreiras não apenas às várias drogas às quais temos acesso, mas também aos seus gatilhos e lembretes constantes, como anúncios, mensagens na caixa de entrada de emails e notificações. É preciso se isolar dos gatilhos, bem como das drogas em si.
Em minha prática, tento aliar a terapia com uma abstinência por no mínimo quatro semanas, período que notei ser o suficiente para o cérebro “resetar” o seu nível basal de dopamina e voltar à homeostase [equilíbrio fisiológico], mas também uso de medicamentos psicotrópicos quando o paciente não consegue tratar o vício sozinho. Então esse é um primeiro passo.
Nos últimos 60 anos a ciência da dependência evoluiu bastante, passando de uma “fraqueza individual” para uma doença crônica e multifatorial. Poderia definir o que causa a dependência?
As causas da dependência são multifatoriais. Existe um componente genético associado a 50% a 60% da causa da dependência, embora ele seja poligênico [envolve vários genes], e não um gene único do vício.
Existem também pessoas com transtornos psiquiátricos concomitantes que são um fator de risco para dependência.
E há também os fatores ambientais, e isso é uma das coisas que sempre enfatizo: o acesso simplificado às drogas de nossa escolha é um fator de risco. Então, se você mora em um bairro onde as drogas estão disponíveis na esquina de sua casa, você tem mais probabilidade de ser exposto a elas e, assim, maior risco ao vício.
Da mesma forma, um médico que é liberal quanto à prescrição de medicamentos aumenta a probabilidade de um paciente ser exposto a drogas prescritas.
No entanto, existem substâncias mais ou menos prejudiciais e, consequentemente, mais estigmatizadas, e outras que são mais aceitas na sociedade.
Drogas ilegais tendem a ser altamente estigmatizadas, e elas também são altamente viciantes. Mas nicotina e álcool também são altamente viciantes e prejudiciais, e ainda assim muito menos estigmatizadas porque são legais e amplamente disponíveis. Há uma hipocrisia inerente.
Normalmente, essa estigmatização vai na linha do que é ilegal e do que é legal, mas sexo e pornografia são altamente estigmatizados, enquanto o vício no trabalho não. Os heróis modernos são basicamente pessoas que nunca param de trabalhar.
O que eu amo sobre estudar a dependência é que há essa interseção com cultura e lei.
Ainda falando sobre os componentes sociais da dependência, muitas pessoas têm preconceito com usuários de crack que vivem nas ruas, mas não com pessoas ricas ou bem-sucedidas que são igualmente dependentes de drogas sintéticas, como estimulantes e opioides. A sra. acredita que o status social pode influenciar o vício?
Essa é uma pergunta fascinante. Se traçarmos um paralelo com a realidade dos EUA, nas décadas de 1980 e 1990 tivemos uma epidemia terrível de crack que envolvia principalmente pessoas negras e pardas que viviam em áreas urbanas. E, naquela época, a dependência era conceituada principalmente como um problema moral e de força de vontade.
Se avançarmos para os anos 2000, o que tivemos foi uma epidemia de opioides prescritos onde pessoas brancas de classes mais ricas vivendo nos subúrbios eram as mais afetadas, e aí o conceito de dependência passou a ser diferente.
Agora, falava-se do vício como uma doença cerebral, algo que requer tratamento e até a nossa compaixão, e não estigmatização. Então é muito claro como essa narrativa é impactada pela estrutura de poder e pelo racismo estrutural.
Em outros momentos, a sra. se declarou contrária à descriminalização de algumas drogas, como cannabis, mas como afirmou há um forte componente de dependência em medicamentos prescritos. A sra. acredita que deveria haver um controle mais forte por parte das agências reguladoras desses medicamentos?
Na verdade, eu votei a favor da legalização do uso recreativo de cannabis na Califórnia. O que eu não sou a favor é de um amplo acesso à cannabis, e isso porque há uma saturação do mercado; aqueles em busca de maconha medicinal eram jovens e saudáveis.
A questão da descriminalização é complicada, porque há uma parcela das pessoas que se tornam dependentes da cannabis. E os sistemas de saúde devem ser equipados antes da legalização para ter uma estrutura de suporte para essas pessoas. Esse é o primeiro ponto.
Em segundo lugar, temos a questão das drogas usadas como medicamentos. A partir do momento que você legaliza e diz que é medicinal, você transmite uma mensagem poderosa ao público sobre o perfil de risco-benefício, onde essencialmente está dizendo que os benefícios potenciais [do medicamento] superam os riscos. E o que aconteceu na epidemia de opioides nos EUA é que o público, incluindo médicos, foi enganado quanto aos riscos.
Não havia evidências para o uso prolongado de opioides no tratamento de dores leves e crônicas. Agora você tem um sistema de médicos que foram mal-informados, com um aumento exponencial de prescrições, levando a riscos atribuíveis ao uso desses opioides por um período de tempo maior e inerentemente levando à dependência. E isso as farmacêuticas não disseram.
Poderia esclarecer o que define o vício como uma doença crônica cerebral?
A base conceitual existe há mais de 200 anos. Temos evidência a partir de estudos da neurociência mostrando mudanças distintas no cérebro envolvendo os níveis de dopamina [um neurotransmissor associado à euforia e ao prazer] em pacientes cujos cérebros são expostos a substâncias viciantes por longos períodos de tempo. Também temos dados, baseados em ensaios clínicos, de que a taxa de resposta a tratamentos para vício tem, em média, a mesma resposta observada em tratamentos de doenças cardiovasculares, obesidade, depressão e ansiedade, de 50%. Você vê taxas semelhantes de recaída –em alguns pacientes– e de remissão em resposta ao tratamento.
Em terceiro, eu argumentaria que simplesmente é prático conceituar o vício como doença porque vivemos em uma época de “patologização” de todos os problemas humanos. Buscamos resolver todos os tipos de males nos sistemas médicos, portanto se deixamos o vício fora disso, estamos excluindo injustamente estes pacientes.
Além das substâncias, as redes sociais também podem levar à dependência. Há evidências de quão prejudiciais são as plataformas para o desenvolvimento cerebral de jovens? E como podemos preveni-las?
É uma pergunta difícil, pois ela depende de muitas variáveis. Existem evidências mostrando que as meninas respondem mais às imagens das redes sociais e aos mecanismos de reforço positivo [nome dado ao estímulo cerebral gerado pelo uso das redes] do que os meninos. Além disso, crianças que lutam contra depressão, ansiedade e outros transtornos de saúde mental também serão mais vulneráveis aos danos das redes.
É preciso também levar em conta a estrutura familiar, se ela fornece alternativas ao reforço positivo, se a criança tem outras atividades que vão suprir de alguma forma as suas necessidades emocionais mais básicas.
Algumas crianças são mais resilientes, ou seja, não importa a quantidade de conteúdo tóxico na internet que elas são expostas, de alguma forma serão capazes de superar isso. Outras, mesmo se tiverem ótimos pais, frequentarem uma excelente escola e tiverem uma rede de apoio, podem cair nas armadilhas das redes sociais.
Em relação à prevenção, o cirurgião-geral americano Vivek Murthy esteve em Stanford na última semana e o que ele defende, e eu acredito ser uma proposta muito boa, não é simplesmente a rotulagem [com avisos de perigo] das redes, mas aumentar a conscientização sobre o lado mais sombrio desta tecnologia, especialmente quando pensamos nos mais vulneráveis, que incluem as crianças e seus cérebros ainda em desenvolvimento. Isso não é apenas responsabilidades dos pais e das famílias, mas também das empresas que lucram com essas mídias digitais.
Mecanismos altamente reforçadores, como o autoplay [de vídeos], o scroll infinito, as notificações, especialmente no horário escolar e à noite, o design apelativo, todas essas formas de quantificação que as plataformas usam para estimular o uso devem ser reguladas. Defendo ainda a proibição de smartphones nas salas de aulas, salas de descanso e refeitórios das escolas da hora que começa a aula até o momento que termina.
No Brasil, estamos vivendo uma febre do ‘jogo do tigrinho’ e outros jogos de apostas virtuais que tem provocado um aumento na procura por tratamento para vício. Como a sra. vê essa disseminação de plataformas de jogos e os riscos, já que envolve também um prejuízo financeiro potencial?
Quando pensamos nos elementos que tornam as redes sociais perigosas, precisamos impedir também a “gamificação” dessas plataformas, com a exposição aos jogos. Da mesma maneira que uma criança não vai entrar em um cassino, ela não deve ter acesso a jogos de aposta online.
Nos EUA, vimos um aumento de 300% a 500% nas chamadas para as linhas diretas por jogadores patológicos após a liberação das apostas esportivas online em alguns estados —felizmente, a Califórnia ainda não é um deles. De novo, estamos falando do acesso como um grande fator de risco.
RAIO-X
Anna Lembke, 56
Professora de psiquiatria e medicina da adicção da Escola de Medicina da Universidade Stanford e chefe da clínica de medicina da adicção de duplo diagnóstico de Stanford. Faz parte do conselho de várias organizações americanas voltadas para dependências, testemunhou em vários comitês na Câmara dos Deputados e no Senado dos EUA. Tem ainda uma agenda ativa de palestras e prática clínica de sucesso. É autora dos livros “Nação Dopamina” (Vestígio, 2022) e “Nação Tarja Preta” (Vestígio, 2023).
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