O período da primeira infância, que vai de 0 a 6 anos de idade, é fundamental para o desenvolvimento da criança e dá sinais de como será sua vida quando adulto, segundo pesquisas.
O acesso à saúde, nutrição, segurança e educação nessa faixa etária, porém, está relacionado a desigualdades sociais como distribuição de renda e racismo estrutural. Fatores ambientais como alimentação e exposição ao estresse são determinantes para a criança de 0 a 6 anos, conforme estudo da USP (Universidade de São Paulo).
Segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, o período da primeira infância é de grandes oportunidades para a plenitude da vida de uma pessoa, mas também de extrema suscetibilidade a influências externas, como pobreza e violência. Por isso, afirma o órgão em publicação, “o Estado deve estabelecer políticas, planos, programas e serviços para a primeira infância”.
A desigualdade de acessos na primeira infância, por uma criança nascer em uma família mais ou menos abastada, é um fator que determina as desigualdades que vão aumentar na vida adulta, diz a professora de Economia da FGV (Fundação Getulio Vargas) Priscilla Tavares.
A primeira infância, porém, pode quebrar essas desigualdades, diz Mariana Luz, CEO da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal. Segundo ela, o investimento nessa faixa etária pode “romper com o ciclo de pobreza”. Mas, para isso, diz, a criança precisa ser amparada por ações que a coloquem como uma prioridade absoluta.
A Folha reuniu dados que mostram que crianças de famílias de baixa renda, baixa escolaridade, negras e de regiões do norte do país, além das zonas rurais, são prejudicadas no acesso à educação, à saúde e na garantia de necessidades básicas, como alimentação.
Dados coletados pelo projeto Primeira Infância Primeiro, iniciativa da Fundação Maria Cecília Vidigal, mostram que 65,05% das crianças de até 6 anos são de famílias de baixa renda.
Fatores como escolaridade e raça dos pais e até a região do país em que moram influenciam sua renda e, consequentemente, a qualidade de vida das crianças na primeira infância.
Quando analisada a taxa de inatividade entre pessoas de domicílios com crianças de 0 a 6 anos de idade, é possível ver que o maior número de pessoas fora do mercado de trabalho são aqueles com ensino médio incompleto, negros e indígenas e moradores do Norte e do Nordeste.
O mesmo dado se repete quando analisada a incidência de extrema pobreza entre pessoas de domicílios com crianças de 0 a 6 anos de idade.
O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) define extrema pobreza como uma renda mensal inferior a R$ 300 por mês. O rendimento afeta a garantia de necessidades básicas, como comida e saúde.
Indicadores de pobreza e raça também se refletem no acesso à saúde das crianças na primeira infância. Mais de 60% das crianças com registro de baixo peso no nascimento são negras, por exemplo. Os registros de mortalidade infantil por causas evitáveis também são maiores para crianças pretas e pardas.
De acordo com dados da Campanha Nacional pelo Direito à Educação sobre 2023, divulgada neste ano, as crianças de 0 a 5 anos mais pobres, pardas e da zona rural têm menor acesso a escolas e creches.
Levantamento feito pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal para um balanço do PNE (Plano Nacional de Educação), mostrou que entre as crianças de 0 a 6 anos mais pobres do país (de famílias com renda mensal de até meio salário-mínimo), 59,8% nunca frequentaram creche ou pré-escola.
Até o fim de 2024, metade das crianças de até 3 anos do Brasil deveriam ter vaga garantida em alguma creche, segundo a lei do PNE, que também previa a universalização da pré-escola para todas as crianças de 4 e 5 anos até o fim de 2016. Nenhuma das duas metas, propostas há uma década, foi cumprida.
Além da desigualdade no acesso à educação, diz Tavares, também é importante ressaltar a diferença de qualidade do ensino ofertado. “Mesmo quando uma criança de origem mais humilde tem acesso a uma creche, a qualidade é muito diferente entre escolas que atingem a população mais vulnerável e crianças de setor econômico mais favorecido”, afirma.
“Isso é muito importante porque a primeira infância é uma janela de oportunidade para a criança desenvolver uma série de habilidades cognitivas com efeito até a vida adulta e o mercado de trabalho”, diz a professora.
Em junho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou um decreto que instituiu a Política Nacional Integrada para Primeira Infância (PNIPI), que prevê diretrizes para a implementação dos dispositivos do Marco Legal da Primeira Infância —que em 2016 promoveu pela primeira vez atitudes voltadas especificamente a crianças com até seis anos de idade.
“Isso virou política pública porque os cuidados na primeira-infância têm efeitos na sociedade como um todo e não só para as famílias individuais”, diz o economista e professor do Insper Naércio Menezes Filho, pesquisador dedicado à primeira infância, educação e desigualdade.
Segundo ele, crianças que se desenvolvem plenamente irão permanecer na escola por mais tempo, concluir o ensino médio, muitas vezes entrar na faculdade, além de entrar no mercado de trabalho formal ou empreender em áreas importantes para o país. “Todos estes fatores aumentam a produtividade futura da criança e também do país como um todo, levando a um maior crescimento econômico”, afirma.
A série Primeira Infância é uma parceria da Folha com a ONG Todos Pela Educação e a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal