Bulimia: cada dia sem vomitar conta – 24/10/2024 – Não Tem Cabimento – Zonatti Apps

Bulimia: cada dia sem vomitar conta – 24/10/2024 – Não Tem Cabimento

A meta de não voltar a vomitar me ajudou a não voltar a vomitar. Foi quando percebi que já não vomitava havia uma semana que entendi que poderia transformar sete dias em oito. Assim como outros vícios ou hábitos comuns da rotina, a prática me acompanhava como o banho antes de dormir. O problema de parar com algo que você adota como tarefa é a sensação de estar sempre em dívida consigo. Não era prazeroso, mas precisava ser feito. Assim como estudar, dormir, pagar uma conta.

Mas quando sete dias viraram oito, o bichinho do desafio me mordeu. Dez dias viraram 15, que viraram meses e agora, anos.

Não foi um clique mágico no cérebro: falamos de anos de terapia até o dia em que, pela primeira vez, não coloquei tudo para fora. O grande ponto é que descobri ser possível, mesmo com a sensação de estar esmagada sob mim. Descobri que transformar o impossível em desafio, com muito apoio psicológico (muito mesmo, preciso enfatizar), se tornou uma estratégia para me sentir orgulhosa de cada avanço. Se o desafio era não deixar nada dentro, se tornou garantir que a comida tome o curso natural e cumpra seu papel dentro do meu corpo.

Mesmo levando esse bichinho para todo lado, tive incontáveis recaídas. A cada uma delas, me senti apenas um rabisco flutuante representando o fracasso que eu era, já que não resisti e lá estava, encarando a privada outra vez. Em um dos últimos episódios compulsivos em que devorei uma pizza inteira em minutos, gastei horas no chão do banheiro chorando ao telefone com a minha mãe. Para alguns, inclusive nesse espaço virtual, é isso que deveria ser feito: enfiar “o dedo na goela” e por tudo para fora.

Mas a essa altura minha família já estava envolvida com o meu transtorno alimentar, porque finalmente entendia o que acontecia comigo, após uma infância e adolescência que consideravam esquisitas. Uma criança que não quer comer, que chora em frente ao espelho desde os quatro anos, que tenta esconder o seu corpo a todo custo.

Minha mãe segurou aquela crise comigo no telefone até às 4h da manhã. Além de companhia, usou sua voz para me lembrar que aqueles pedaços de pizza, no fim das contas, eram “só” comida, que estava tudo bem tê-los comido; também resgatou meu pequeno troféu: já eram dois anos sem vomitar. Foi assim que resisti ao impulso de mandar embora o que era mesmo, só comida, que eunem lembro mais o gosto, que virou cocô, que foi para o esgoto.

Depois desse dia não voltei a sentar ao lado da privada. Não por falta de vontade, mas porque o desafio se transformou: nunca mais zerar meu placar. Combinei comigo que um quadradinho ou uma barra de chocolate, um pedaço de pizza ou oito, um prato de comida ou três, todos os alimentos que ingiro têm o direito de ficar onde estão.

Abandonei a restrição, as estratégias para minimizar a fome ou vomitar. Vou dizer que não penso muito antes de comer e às vezes conto calorias? Não, porque é injusto mentir sobre algo que me é tão caro e sei que é caro para quem ainda encara a privada diariamente. Mas com o cuidado que nem todos têm a capacidade de oferecer a nós, que convivemos com doenças mentais, me agarro às pequenas e grandes conquistas, como o meu placar que, até hoje, não voltou a ser zerado.


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