No fim, havia os dragões.
Sim, parece óbvio em uma série chamada “A Casa do Dragão”, mas há de se levar em conta que esta primeira temporada dedicou a esmagadora parte das cenas a intrigas palacianas, traições, alianças —enfim, à política— enquanto os bichões ficavam em segundo plano como arma de dissuasão, um botão vermelho.
Assim teria prosseguido se não houvesse uma modificação crucial sobre o livro original —”Fogo e Sangue”, de George R.R. Martin—, promovendo os répteis de objeto de cena a agentes da história. E daqui por diante este texto trará spoilers da temporada.
As mortes do garoto Lucerys —Eliot Grihault— e de seu dragão Arrax servem de estopim à guerra fratricida dos Targaryen pelo trono de ferro.
Tanto no livro de Martin quanto na série criada por Ryan J. Condal eles são despedaçados pelo réptil muito maior de Aemond —Ewan Mitchell. Mas, se no original essa era mesmo a intenção do tio vingativo, nas telas a morte ocorre por vontade de seu dragão, irritado com a petulância do bicho menor que lhe chamusca o pescoço. É um homicídio culposo cujas consequências são percebidas por Aemond —aliás, Mitchell, desde que surgiu no sétimo episódio, é um ladrão de cena.
Com isso, “A Casa do Dragão” retoma um dos elementos centrais em “Game of Thrones”, o megasucesso encerrado em 2019 para o qual serve de prólogo: o imponderável.
Na antecessora, toda tramoia política estava à sombra de uma ameaça natural ou sobrenatural, algo que havia se perdido em “A Casa do Dragão”, restrita à tragédia de uma família real específica e com um verniz de lógica e paralelos atuais mais espesso.
A guerra que ganhará corpo na segunda temporada, porém, deve ter suas reviravoltas determinadas pelos sentimentos mundanos, como deixam claro as cenas de luto de Rhaenyra —Emma D’Arcy— após perder um bebê e ao receber a notícia de que o favorito, Luc, morreu.
Esse torvelinho —e no meio dele há uma sequência na qual o marido, Daemon, vivido por Matt Smith, se distancia dela a ponto de se tornar agressivo— deve passar a mover a personagem muito mais do que a coroa que ela busca garantir como herdeira legítima após a morte do pai, Viserys —Paddy Considine, que fará falta.
Com isso, a personagem de D’Arcy, apresentada como a parte “emoção” em contraponto ao calculismo de sua madrasta, Alicent —Olivia Cooke—, ganha camadas, tornando o conflito menos maniqueísta, ainda que por ora pareça inevitável torcer por ela.
Em suas cores soturnas e sua preferência pela realpolitik, “A Casa do Dragão” pode parecer menos atraente do que o multiverso de “Game of Thrones”, com suas muitas subtramas, linhagens familiares extensas e conflitos em diversas escalas.
Ela fala mais alto, porém, àqueles que apreciam as tramas políticas e a ironia com a realpolitik. É como se a primeira partisse do Tolkien e chegasse a Shakespeare, e esta já partisse de Shakespeare e chegasse aos romances históricos de Hillary Mantell ou mesmo a dramas contemporâneos sobre o poder, como “House of Cards” e “Borgen”.
É notável ainda o efeito do terremoto cultural dos dez anos que separam as duas estreias. O uso frequente de estupros como artifício dramático, o elenco quase integralmente branco, a violência profusa e repetitiva como linguagem —nada disso parece mais aceitável aos olhos do público e dos produtores.
Aos poucos, a “prequência” assume identidade própria, e isso parece ter agradado a Martin, que mais de uma vez elogiou os rumos adotados pelos roteiristas, divergentes do livro em algumas ocasiões.
O que a série ainda parece dever é uma dimensão maior para Alicent, que acabou engolida pelos demais —a começar do pai, Otto Hightower, um soberbo Rhys Ifans.
A produção da HBO tem recebido, sobretudo nos episódios recentes, mais elogios do que críticas do público e da imprensa. Há arestas a ajeitar, mas o feito desta primeira temporada não é trivial.