Sempre que surge algum diretor com o rótulo de “transgressor”, “subversivo” ou algo do tipo, imagino Paul Verhoeven pensando “Segura aqui minha cerveja”. Não existe, no cinema moderno, autor mais incisivo de seu papel como contador de histórias que vão muito além das primeiras impressões.
Trago à mesa a maior das evidências: “Tropas Estelares”, ficção científica baseada no livro de Robert Heinlein, que acabou de completar 25 anos. O que pode parecer uma aventura de ficção científica com batalhas espaciais e soldados combatendo uma ameaça alienígena é, na verdade, Verhoeven fazendo um filme em que os heróis são nazistas.
Diz muito sobre a perspicácia do executivo hollywoodiano médio que o diretor holandês tenha desenvolvido, filmado e finalizado “Tropas Estelares”, sem ao menos camuflar suas influências, sob as asas de um grande estúdio. Na verdade, arrisco que a turma que bancou a aventura acreditava estar fazendo um favor.
Em 1997, Paul Verhoeven precisava, ao menos aos olhos da indústria, dar a volta por cima. Em Hollywood, ele já provara ser um cineasta de resultados financeiramente confiáveis depois de “RoboCop” (1987), “O Vingador do Futuro” (1990) e “Instinto Selvagem” (1992).
“Showgirls”, de 1995, quebrou essa sequência. O drama sobre uma stripper em busca de seus sonhos foi encarado não como um filme sério, e sim como um filme erótico soft que mal cabia em um cinema de quinta. Proibidíssimo para menores, ganhou a classificação NC-17, naufragou nas bilheterias e logo foi rotulado como um dos piores filmes da história (não é, mas essa é uma outra história).
Verhoeven seria, portanto, um diretor em busca de “redenção”. “Tropas Estelares” tinha toda a pinta de um blockbuster capaz de mobilizar a massa e criar uma nova propriedade intelectual milionária, bem ao estilo “Star Wars”. Era ao menos o que o estúdio pensava. O cineasta, por sua vez, tinha outras ideias.
Ao ler o livro de Robert Heinlein, publicado originalmente em 1959, Verhoeven percebeu não só o tom militarista, mas também as entrelinhas fascistas. A história versava sobre a obliteração de uma raça pelo poderio militar superior de outra. “A história era sobre a política americana”, disse o diretor. “Como europeu eu enxergo como alguns aspectos da sociedade americana podem pender para o fascismo.”
As evidências para ele não podiam ser mais claras. Embora o país ainda vivesse sob a presidência do democrata Bill Clinton, o povo americano se tornava também um povo armado, aparentemente sem nenhum limite para acumular um arsenal doméstico. No Texas, sob o governo de George W. Bush, o número de execuções também havia disparado.
O clima, consequentemente, parecia propício para criar uma aventura que espelhasse esse fetiche latente pelo militarismo. No texto de Heinlein, Verhoeven enxergou os elementos necessários para materializar essa história, mesmo que o ponto de partida fosse algo tão bobo quanto a humanidade combatendo insetos invasores do espaço.
A escolha do elenco foi o primeiro passo. Mark Wahlberg e Matt Damon fizeram testes para o papel do protagonista, Johnny Rico. Verhoeven por sua vez escolheu Casper Van Dien. Segundo o diretor, além de ter cara de personagem de gibi, o ator parecia egresso de filmes de Leni Riefenstahl, a arquiteta da propaganda nazista em trabalhos como “O Triunfo da Vontade”.
Depois de Van Dien, cada escolha se encaixava no estereótipo “branco, loiro e arrogante” imaginado por Verhoeven. Dina Meyer e Denise Richards pareciam modelos (no caso da segunda, ela fora de fato) do que soldados, assim como Patrick Muldoon. Neil Patrick Harris aos poucos aceitava papéis adultos depois de sobreviver seus anos como astro infantil.
A ideia de Verrhoeven em fazer de seus soldados exemplos da “raça ariana” não foi sutil. Pelo contrário: era uma ferramenta narrativa dedicada a eliminar resquícios de personalidades individuais. Ele queria, segundo suas palavras, fazer um filme sobre fascistas em que eles não percebessem que eram… fascistas!
Foi a lógica que permeou cada fragmento do filme. A mídia usada como instrumento de propaganda militar e autoritária, algo ensaiado em “RoboCop”. O figurino que remetia aos uniformes da SS, a polícia nazista. O design das espaçonaves, que abriam mão de qualquer elegância para se tornar frias e funcionais. A violência extrema!
Acima de tudo, “Tropas Estelares” abraçou a sátira ao nazismo no tratamento reservado aos invasores. Ante a “civilização” representada pelos soldados, os insetos surgem como uma horda amorfa, um oceano de besouros assassinos sem voz ou personalidade, guiados por uma “mente coletiva”. O estrangeiro, além de não ser humano, também não merecia piedade ou compaixão. São monstros. Como tal, merecem unicamente a morte.
Agendado para uma estreia em julho, no meio da temporada do verão americano, “Tropas Estelares” foi adiado para o estúdio se concentrar em “Força Aérea Um”, então considerado mais comercial. Uma data em setembro foi empurrada para novembro. Na mesma época o estúdio teve uma mudança em sua liderança, e os novos chefes perceberam o tamanho da encrenca que havia passado incólume pelo regime anterior.
A essa altura, porém, o filme já estava pronto, a máquina do marketing o vendia como um grande épico espacial, recheado de criaturas bacanas e rostinhos bonitos. Por sua vez, o produtor do filme, Jon Davidson, enxergava que a plateia não seria tão generosa com um filme fascista: “Nunca vamos recuperar o dinheiro”, cravou.
O golpe fatal veio em um editorial do jornal “Washington Post”, publicado à época do lançamento. O texto basicamente disse que o filme havia sido feito por dois neonazistas, o próprio Paul Verhoeven e o roteirista Ed Neumeier, criador justamente de “RoboCop”. Depois de uma estreia decente, “Tropas Estelares” despencou nas bilheterias, mal recuperando seu orçamento de US$ 100 milhões.
Curiosamente, o tempo tratou de revisar a percepção sobre o filme. Verhoeven nunca escondeu suas intenções ao fazer “Tropas Estelares”. O fã de seu trabalho recuperou a importância da aventura como uma sátira ao mesmo tipo de cinema que ele pretendia simular.
O diretor, ser dar muita bola, viu sua carreira em Hollywood chegando ao fim. Verhoeven ainda fez “O Homem Sem Sombra” em 2000, mas preferiu retornar à Europa. Seus últimos filmes, “Elle” e “Benedetta”, mostram que sua veia subversiva continua firme e forte. Ao menos o público sabe, hoje, exatamente o que esperar de um trabalho com sua assinatura.
“Tropas Estelares” poderia ter disfarçado sua linha temática como uma aventura de ficção científica capaz de incendiar os cinemas. Sua verdadeira natureza, entretanto, sempre esteve exposta. O fracasso foi inevitável. Não que Verhoeven tenha escondido o filme que estava fazendo. Mas o público não gostou de ser confrontado com uma verdade inquestionável, expressada pelo próprio diretor: “Estes são seus heróis e heroínas. A propósito, eles são fascistas”.