O enforcamento do Papai Noel – 25/12/2022 – Luciano Melo – Zonatti Apps

O enforcamento do Papai Noel – 25/12/2022 – Luciano Melo

Cada pessoa possui suas próprias crenças. O conjunto destas pode ser fixo ou mutável, temporário ou duradouro. Pode ser superficial ou profundamente estruturado, pode ser julgado como racional ou absurdo. O delírio é uma falsa crença, construída sobre inferências incorretas a respeito da realidade. É firmemente mantido a despeito de não ser compatível com o que todo mundo acredita e nem se desfaz frente às óbvias provas do contrário.

Ida acredita em um homem mágico que a vigia constantemente. Ela está certa de que, uma vez por ano, o ser encantado a visita e lhe deixa presentes, mas somente se ele julgar o comportamento dela como adequado. A crença de Ida viola os princípios científicos de realidade, é, portanto, um delírio? Depende do contexto. Quando eu disser que Ida tem cinco anos, imediatamente se dissipa a preocupação sobre a saúde mental dela.

O fantástico entorno natalino continua a provocar boas discussões. Vale muito a leitura do ensaio “O Suplício de Papai Noel”, do antropólogo Claude Lévi-Strauss, lançado em 1952 na revista Les Temps Modernes. O texto foi republicado na recente edição da coletânea, do mesmo autor, “Somos Todos Canibais”, e remete a acontecimentos de 1951. Os fatos narrados ensejam reflexões pertinentes à nossa época, vamos a estes.

Autoridades eclesiásticas francesas denunciavam a crescente substituição da temática cristã por símbolos pagãos durante as celebrações natalinas. O Papai Noel contaminara o real propósito do Natal. À insatisfação católica somaram-se forças da Igreja protestante, isso fez o movimento crescer ainda mais. O ápice, então, ocorreu no dia 24 de dezembro, quando o Papai Noel foi enforcado nas grades de uma catedral francesa e, em seguida, queimado em frente às crianças órfãs. O clero havia condenado o personagem herege, um intruso que usurpava o lugar de Cristo e que bania o presépio.

Estas circunstâncias trouxeram oportunidades preciosas aos anticlericais de ataque aos religiosos, faziam-se acusações da intromissão cristã quanto às decisões privadas de festejos. Afinal, o Papai Noel oferta um momentâneo escape da realidade lógica, um descanso que ajuda o enfrentamento posterior. Também realça a pureza e a ideação mágica infantil, algo bonito de se ver e que deve ser incentivado. Mas há um paradoxo, a Igreja criticava um símbolo fantástico enquanto ateus convertiam-se em guardiões da superstição. Essa contradição só existe por haver uma contínua mistura de motes cristãos com motes pagãos.

Lévi-Strauss nos recorda que a diferença entre Papai Noel e uma divindade tradicional é que os adultos não acreditam nele, embora forcem crianças a acreditar. Portanto, o velhinho gordo separa os mais novos dos adolescentes e adultos. A ilusão infantil, cuidada por adultos, se desfaz como se fosse um rito de passagem, um marco do amadurecimento, quando os muito jovens passam a saber o que somente os mais velhos sabem. Os ritos de iniciação auxiliam os adultos a manterem os pequenos em obediência e a disciplinarem suas reivindicações.

Este expediente aparece em outras culturas. Os pueblos, nativos do sudoeste dos Estados Unidos, têm um personagem semelhante ao Papai Noel. Membros das tribos surgem periodicamente fantasiados e mascarados, encarnando deuses que retornam às aldeias. Estes são os Katchinas, que punem ou recompensam as crianças, enquanto estas não reconhecem seus familiares debaixo dos disfarces.

A tradição do Papai Noel foi construída a partir de combinações de legados de personagens ancestrais. Por exemplo, na Roma clássica, havia a festividade de Saturnália, que ocorria em dezembro. Seus participantes trocavam presentes entre si e celebravam Saturno, uma deidade que devorava as crianças, enquanto idosos bondosos as protegiam. Na Escandinávia, por sua vez, o demônio Julebok trazia presentes aos pequenos em datas especiais.

O Papai Noel é um bastião sólido do paganismo moderno.


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