Caubóis são uma das instituições mais sólidas e respeitáveis dos Estados Unidos. No primeiro século de vida, quando aquela nova nação ao norte do rio Grande lutava para se estabelecer como uma República federativa verdadeiramente democrática, em que os treze estados originais deveriam, por evidente, observar o que estava disposto nas então quinze emendas de sua Carta Magna, mas tinham autonomia para decidir segundo suas próprias necessidades, não se pode negar a fragilidade das leis, o menoscabo do cidadão comum em acatá-las e a balbúrdia fundamental de que resultava todo esse processo, desafio que o novo país da América deveria superar a fim de provar-se de fato digno de ter pegado em armas ao longo de sete anos, entre 1776, ano em que declarou sua independência da metrópole inglesa de maneira unilateral, e 3 de setembro de 1783, quando sua vontade de ser livre os catapultou à vitória e se viram, afinal, livres do domínio de Jorge 3° (1738-1820).
Os vaqueiros americanos entram nessa equação como sacerdotes profanos e bárbaros da terra, mestres na alquimia de fazer do talento em lidar com o lado mais primitivo da natureza uma qualidade prezada não só por quem os rodeia, mas pela pátria americana como um todo, por anos a fio, sendo ainda hoje uma peça fundamental no mecanismo gigantesco, complexo e implacável que é a economia dos Estados Unidos. O problema é que, da mesma forma como também acontece em outros segmentos da sociedade na América, seu prestígio e mesmo sua presença foram gradualmente apagados da história, restando apenas a lembrança de uma época distante em que foram encarados sob a perspectiva dos grandes desbravadores que continuaram a ser, não obstante sua grandeza e mesmo o espaço físico que um dia ocuparam já fossem uma imagem pálida no horizonte da memória.
Os episódios inescapavelmente conflituosos protagonizados por esses homens no transcurso de 250 anos, harmonizados aos trancos e barrancos à custa de sangue, suor, lágrimas e o aço dos revólveres e espingardas, sempre em defesa da liberdade, ideia que a Constituição dos Estados Unidos a questão de frisar em trechos diversos, inclusive na controversa e algo cínica busca da felicidade — malgrado esse conceito por natureza tão ambíguo perca-se e degenere em justificativa para a intolerância, o ódio e o derramamento de sangue, expediente inadmissível sob qualquer hipótese num território que se pretende regido pela higidez solar de democracia. Senhora das angústias mais profundas do homem, de onde emanam-lhe os sonhos mais doces, a liberdade se nos apresenta sob formas as mais inconcebíveis à razão; contudo só faz sentido se contempla o que existe de mais lindo na condição humana, sua pluralidade.
É claro que não se pode tomar o que acontecia nos Estados Unidos entre os séculos 18 e 19 à luz do politicamente correto — nem mesmo nas então metrópoles e hoje megalópoles Nova Amsterdã, rebatizada de Nova York, e Fort Dearborn, a não menos glamorosa Chicago de nossos dias —, e essa é a regra de ouro dos westerns. Revirando os segredos entre envergonhados e preciosos desse país fascinantes e do povo inspirador e que o fundou e o habita, John Sturges (1910-1992) eleva “Joe Kidd” à categoria de um tratado sociológico bastante sui generis e completamente desabotoado do dia a dia na vila de Sinola, perdida num recanto qualquer nas imediações com o México. Sturges aproveita bem os ventos de liberdade que sopravam naquele distante 1972 para carregar nas tintas do discurso ufanista, empregando para a tarefa a mais americana das celebridades de Hollywood — e uma das mais talentosas.
Nunca houve um homem como Clint Eastwood. Alma do faroeste — e do próprio cinema americano pós-moderno — por excelência, Eastwood põe no chinelo muito antimocinho e quase todos os super-heróis que certos estúdios empurram goela do público abaixo, sem que este sequer pigarreie. O que se vê em “Joe Kidd” é mais um dos tantos shows de interpretação de um ator no auge da potência física e da maturidade artística, talvez o único em muitos anos a reunir essas duas qualidades fundamentais em seu ofício por quase meio século — arrisco-me a dizer que Ryan Gosling seja, disparado, quem mais aproxime da grandeza eastwoodiana, com a vantagem de ser muito mais palatável a tramas de romance, em que o veterano também combateu, sem o mesmo brilho, contudo, a exemplo do que se vê em “As Pontes de Madison (1995), dirigido por ele. Elmore Leonard (1925-2013) escreveu para Eastwood o personagem de sempre: o pistoleiro branco, bonitão e muito, muito debochado (a grande novidade na aura de galã e antigalã que o espectador conhecia) que não demora a se meter em encrenca. O componente sociopolítico, diluído de forma a não comprometer ninguém, aparece na figura do revolucionário mexicano Luis Chama, de John Saxon (1936-2020), que comanda uma revolta contra fazendeiros avessos à presença de latinos na região.
O suposto caos do roteiro de Leonard, que até poderia ser tomado como uma declaração oculta de amor por Fidel Castro (1926-2016) e Che Guevara (1928-1967), é amenizado pelos diálogos muito bem-humorados e mesmo cômicos em certas passagens, ditos por um Eastwood que sabe muito bem o que faz ali. Ao contrário do roteirista, manifesto minhas paixões abertamente: Clint Eastwood é meu ideal de homem. E para quem não seria?
Filme: Joe Kidd
Direção: John Sturges
Ano: 1972
Gêneros: Western/Aventura/Ação
Nota: 9/10