O legado de nossa miséria se prova especialmente oneroso quando não temos outra coisa que mostrar além do medo, filho dileto do fracasso. A história segue seu próprio ritmo, contrabalançando avanços e retrocessos com a naturalidade que causa espécie em todo homem minimamente judicioso, sempre a reboque de seus caprichos. São justamente essas inconsistências da civilização que fazem da vida a fonte de surpresas que dão alguma lógica à jornada das criaturas humanas sobre a Terra, um globo aquoso flutuando perdido na imensidão do universo sem começo e sem fim. Manifestar suas fraquezas mediante o receio ponderado quanto a determinadas situações não é nem certo nem errado, mas só uma reação estritamente instintiva, e homens somos em muitas circunstâncias apenas a manifestação de vida mais curiosa a já ter passado pelo mundo. Seres humanos estamos sempre em busca de autoafirmação, somos aterrados por uma necessidade insana de que nos digam que vamos pela estrada mais reta e fazemos tudo da forma mais digna. Por mais que a intuição sopre-nos a resposta que o coração intimamente já conhece desde o princípio dos tempos, se não nos enquadramos em dados padrões não valemos grande monta.
Wes Anderson fala da sensação de desalento fundamental que guia o gênero humano se valendo da figura de um jovem casal — jovem demais —, incapaz de corresponder a dadas expectativas, e francamente desinteressado de o fazer. Seu “Moonrise Kingdom” (2012) se espraia por essas emoções tão rudimentares da natureza do homem ao passo que cristaliza o argumento da solidão como o início e o fim de tudo quanto há de mais misterioso na Terra. Anderson é dono de uma das cabeças mais vesanamente brilhantes do cinema. Seu jeito sempre muito próprio e original de apreciar as banalidades que fazem a vida uma peça rara e preciosa torna-se o maior atrativo em seus filmes, por si sós experiências altamente perturbadoras. Aqui, percebem-se de imediato os traços tão característicos que marcam sua obra antes e depois, como se atesta em “Os Excêntricos Tenenbaums” (2001) e “O Grande Hotel Budapeste” (2014). Mas com uma ligeira diferença.
O roteiro de Anderson e Roman Coppola ambienta o enredo em 1965, ressaltando que a trama se passa numa ilha — malgrado as pessoas que começam a se desnudar para o público possam morar em qualquer parte do globo. A mocinha Suzy Bishop, de Kara Hayward, mora com os pais e o irmão caçula num farol. A pasmaceira local fica um pouco menos avassaladora devido a um acampamento de escoteiros em que Sam, o candidato a herói vivido por Jared Gilman, sofre todo gênero de atribulações próprias da idade, em especial as que se referem a intolerância raivosa de colegas mais velhos. Os dois se conheceram nas férias de verão do ano passado e começaram a trocar cartas em que expõem seus anseios, suas mágoas e, planejam a aventura sobre a qual o filme se debruça ao longo de boa parte dos 93 minutos de projeção.
O diretor usa bem o recurso da narrativa epistolar — há um longo segmento em que os personagens de Hayward e Gilman verbalizam o que escrevem e leem um para o outro, poético e quase cômico — enquanto prepara o terreno para a introdução de tipos secundários, mas que imprimem fluidez e leveza ao resultado final. O casamento de fachada dos pais de Suzy, Walt e Laura, interpretados por um Bill Murray sempre cheio de cartas na manga e Frances McDormand, que dispensa apresentações, bem como a subtrama que opõe o personagem de Gilman, órfão, e a assistente social encarnada por Tilda Swinton, são momentos em que o sarcasmo bem dosado de Anderson aflora à superfície, ajudado pelo realismo mágico do estilo, e quem assiste começa a tomar pé do que pretende “Moonrise Kingdom”, bem na hora do lirismo despretensioso e cheio de excelentes metáforas visuais do apito final. Mais Wes Anderson impossível.
Filme: Moonrise Kingdom
Direção: Wes Anderson
Ano: 2012
Gêneros: Romance/Comédia
Nota: 9/10