Ao longo da vida, todos vamos nos inclinando para uma ou outra matéria em especial, alguns até as raias da loucura — ao menos em se tomando por padrão a questionável sanidade que define as conexões humanas mais superficiais. Em “Mães Paralelas”, como já se pode inferir pelo título pouco original, Pedro Almodóvar desdobra aspectos do vínculo quase sempre eterno de mulheres e os frutos quase sempre pouco benditos do seu ventre, como já fizera em “Tudo sobre Minha Mãe” (1999), ou “Julieta” (2016), mas aqui o diretor parece querer revelar facetas menos evidentes e mais auspiciosas dessa sua, digamos, busca. No que toca a “Mães Paralelas”, Almodóvar recebe uma ajuda providencial. Em seu oitavo filme junto com ele ao longo dos últimos 25 anos, Penélope Cruz, sua musa pop-hollywoodiana, dá o sangue e absorve as cores e o movimento que caracterizam a obra do mestre, incorporando a linguagem mesma que Almodóvar persegue como se disso dependesse sua própria vida. Poucas atrizes hoje entendem como Cruz o que o cineasta procura; raras delas o fazem com tanta beleza e tanta dor, como já o fizeram Cecilia Roth, Marisa Paredes ou Chus Lampreave (1930-2016), decuplicando o potencial dramático de um texto narrativamente irretocável e dotando cada cena de uma força toda sua, capaz de conferir-lhe sobrevida para muito além do próprio filme.
Todos os elementos que fazem de Almodóvar o Almodóvar que o mundo aprendeu a respeitar como o artista incomparável que é aparecem em “Mães Paralelas” no seu devido tempo, como uma máquina muito azeitada, sem que nenhum artificialismo se imponha. A perspectiva visceral de uma personagem cheia de nuanças diante de um conflito que só faz se agravar, as consequências ético-morais das atitudes que toma a fim de debelar a crise e a elaboração reflexiva sobre um episódio da história política moderna da Espanha vêm a lume cada qual no momento que o diretor-roteirista julga mais adequado, e o julgamento de Almodóvar nunca é leviano. Embora seja uma de suas especialidades, tratar da agonia de duas mulheres, que têm as vidas estranhamente imbricadas, remetendo à justa reivindicação por merecimento e independência, é um processo cuja evolução não vislumbra trégua e cuja premência jamais se esgota, muito menos para ele. No transcurso de mais de quatro décadas de carreira, Almodóvar desenvolveu um talento exclusivo quanto a extrair de melodramas burgueses iluminações para problemas universais, e em “Mães Paralelas” a qualidade das atuações harmoniza com a proposta do diretor de um filme mais austero, menos delirante, num naturalismo sem prejuízo da sensibilidade, o que seus atores — e sobretudo suas atrizes, claro — lhe proporcionam à farta.
Janis, a personagem de Cruz, é uma fotógrafa madrilenha cujo desejo de ser mãe vai sucumbindo à urgência do tempo e ao andamento desregrado da carreira. Como se o destino se encarregasse de dar uma força, ao seu modo sempre estouvado, Janis acaba engravidando de Arturo, o arqueólogo forense vivido por Israel Elejalde, depois de uma seção de fotos para promover o novo livro dele. Num corte meio seco demais, que pode induzir o público ao equívoco, Janis surge prestes a dar à luz, dividindo o quarto do hospital com Ana, mãe solteira como ela, e apenas dezessete anos. Milena Smit e sua performance assumidamente despretensiosa, raspando na displicência, contraponto da cornucópia de tensão a que se vai assistir pouco depois, poderia ser um movimento bastante arriscado, mas funciona muito bem, tanto que Smit e Cruz seguem partilhando a cena até o final. A convivência forçada e a princípio efêmera das duas, feito trens chegando e saindo de uma estação lotada, já é o suficiente para que encontrem suas interseções. Nesse momento, Almodóvar principia a conferir a “Mães Paralelas” a carga de emoção de seu roteiro, pendendo inicialmente da euforia para a placidez, receita a que o diretor vai acrescentando reviravoltas saborosamente bizarras, com cuidado.
“Mães Paralelas” parece que vai sair do eixo, mas é tudo método. Janis, no começo exalando uma incontrolável pulsão de vida por todos os poros, passa a despertar a piedade da audiência, mormente depois do reencontro com Arturo, que vai até seu apartamento a fim de conhecer Cecilia, a filha que teve com ela. O que nasce disso, a primeira guinada do enredo, é o gancho de que Cruz se vale para capturar de vez a atenção e o regozijo do público, frisando as idas e vindas de sua anti-heroína. Smit, por sua vez, despeja sobre Ana toda a circunspecção que se apreende de sua vida. Ambas se tornaram mães sem querer, mas para a Ana a maternidade além de um fardo, se converte na lembrança de um dos eventos mais infelizes que já foi forçada a protagonizar. Diferentemente de Janis, não está sozinha, mas logo se descobre completamente abandonada pela mãe, Teresa, a atriz decadente que, depois de anos, volta a ter uma oportunidade de deslanchar, desde que se submeta a começar a turnê da peça que vai estrelar pelo interior, deixando à própria sorte a filha e a neta recém-nascida. Aitana Sánchez-Gijón fecha esse arco verdadeiramente dramático com uma participação sóbria, mas cirurgicamente precisa, enquanto Rossy de Palma como Elena, a melhor amiga de Janis, também se faz notar, seja pela figura extravagante, seja pela personalidade algo enigmática de sua personagem, que como se verifica a dada altura, tem razão de ser.
A discussão de assuntos colaterais, a exemplo do quão tóxica pode ser a chegada de um filho, sobretudo sem o devido esteio familiar para essa nova mãe (e, ainda mais importante, sem o necessário conforto espiritual de que ela certamente há de se ressentir), junto com as chagas ainda por se fecharem na Espanha, alusão aos mortos e desaparecidos políticos da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) — argumento trabalhado de maneira insatisfatória por Almodóvar, que se presta mesmo só a justificar a presença do personagem de Elejalde —, vêm à superfície com força e propósito desiguais, dando-se preferência, acertadamente, ao primeiro, malgrado, pesando-se um pouco a mão, se possa alegar que em “Mães Paralelas” ambos funcionem como um trampolim de onde o diretor se lança para uma terceira abordagem. Passados mais de oitenta anos do fim desses conflitos, marcados pelo enfrentamento bárbaro de nacionalistas e fascistas e o rastro de meio milhão de mortos responsável por abrir caminho para a ditadura igualmente sanguinária de Francisco Franco (1892-1975), Janis ainda não sabe o que foi feito do cadáver do bisavô, infortúnio que contribui para o problema que o nascimento de Cecilia acaba encerrando, e é essa a essência do filme. A menininha é quem descerra uma porção de nós, para o bem e para o mal, em especial os que ligavam Ana, que sobrevive a mais uma fatalidade, e Janis.
“Mães Paralelas” é Almodóvar na veia. Cheio das referências já clássicas nos filmes do diretor, como o vermelho, a marca registrada que aqui recebe a demão oportuna do diretor de fotografia José Luis Alcaine, a narrativa faz questão de começar simples, até meio fácil, meio besta, e ir se enroscando sobre si mesma, como a serpente que se prepara para dar o bote em quem assiste. O encerramento, absurdo e lírico, remonta a sentimentos como o que pode existir de mais fugaz no mundo e a eternidade, a continuação da vida para além da morte, que sempre se impõe. Os braços para Almodóvar nos servem para enterrar nossos mortos e embalar os frutos de nossa descendência. E os olhos, muito mais para verter o pranto que para mirar alguma promessa de redenção.
Filme: Mães Paralelas
Direção: Pedro Almodóvar
Ano: 2021
Gênero: Drama/Comédia/Suspense
Nota: 9/10