O afinadíssimo elenco de “The Boys in The Band”, composto por gays assumidos e talentosos, cuja trajetória não deixa dúvidas sobre a boa recepção que o longa teria, mostra que fazer parte de um grupo minoritário, muito mais que um ato de resistência e mesmo bravura, já foi uma afronta imperdoável ao estabelecido, castigada com perseguições, ultrajes públicos, limites profissionais inexplicavelmente estreitos, demissão e, na pior da pior das hipóteses, surras que não raro degringolavam em fraturas expostas, mutilações e morte. Joe Mantello aborda as tantas particularidades das relações entre homens num trabalho primoroso, documento de uma fase e de um nicho social pleno de dores e delícias. A história nasceu originalmente nos palcos da Broadway, assinada por Mart Crowley (1935-2020); dois anos depois, ratificaria o sucesso inicial também nas telas, pelas mãos seguras de William Friedkin, e por fim, voltaria à baila em 2018, lembrada por Mantello pelo seu cinquentenário.
Em 1968 — um ano antes da fatídica incursão da polícia ao Stonewall, bar famoso por reunir homossexuais masculinos numa Nova York sexualmente democrática, na madrugada de 28 de junho de 1969 —, ninguém cogitava admitir que houvesse outras maneiras de amor que não aquele que dissesse respeito a um homem e uma mulher, de preferência unidos em matrimônio com a manifesta intenção de constituir família, mesmo que todos soubessem que essas pessoas, pagadores de impostos como o restante da população, existissem e estivessem muito mais próximas do que alguns gostariam. Da intolerância nascida da cadeia desses embates silenciosos, dados com frequência nos palcos enfumaçados dos inferninhos das megalópoles planeta afora, na calada da noite, tomavam forma episódios como o que marcou a luta pela igualdade de direitos para cidadãos gays, escancarados em passeatas e atos políticos nos quais mencionar o orgulho de ser diferente — diferente, não uma aberração — era a palavra de ordem e uma questão de sobrevivência. O ataque a Stonewall teve o condão de agrupar uma classe particularmente aguerrida entre si, que nutre suas idiossincrasias, como qualquer outra, mas que fomenta uma modalidade de discriminação interna não menos repulsiva que o preconceito de indivíduos heterossexuais (ou homossexuais autorreprimidos), características que voltaram com a corda toda numa época sem a necessidade de guetos para se expressar a identidade e vivenciar o amor, ou apenas o prazer.
Um anfitrião nada fofo reúne seis amigos, um penetra e um convidado bastante sui generis a fim de celebrar o aniversário de um deles, e a partir desse ponto são liberadas doses de rancor, cinismo e mesmo ódio, sutis, mas com poder o bastante para desmantelar laços fortes só na aparência. A versão do diretor, roteirizada pelo próprio Crowley, seu canto do cisne, e Ned Martel, conta com a produção do incansável Ryan Murphy, o nome por trás de empreitadas caras ao público homossexual, a exemplo das séries “Halston” (2021) e “The Assassination of Gianni Versace: American Crime Story” (2018), biografias de dois grandes estilistas mortos em circunstâncias trágicas.
A festa em torno da qual gira a narrativa é dada por Michael em homenagem a Harold, de Zachary Quinto, que completa 32 anos e só aparece muito tempo depois que o personagem de Jim Parsons dispara o gatilho de sua metralhadora cheia de mágoas. Ainda mais ardiloso devido à renúncia ao álcool — que no seu caso mais parece a autopenitência construída ao longo de anos da culpa católica por não poder conciliar duas naturezas que se anulam entre si —, é Donald quem engole as diatribes insuportavelmente amargas, um tanto malditas, do dono da casa. Donald, interpretado por um Matt Bomer num grande momento, é o arquétipo do gay socialmente tolerável: bonito, discreto, refinado (ainda que ganhando a vida como zelador no subúrbio), altruísta (malgrado esse comportamento quase sempre seja encarado como uma das muitas faces da dissimulação, sobretudo entre homens gays) e algo deslocado por ser como é. Aos poucos, baixam na cobertura de Michael os outros convivas desse festim diabólico, cada qual representando uma segmentação dentro da segmentação, reprodução proposital de padrões artificiosos e caricaturas entre o bizarro e o burlesco: há o latino e efeminado Emory, de Robin de Jesús; o negro Bernard, de Michael Benjamin Washington, inclinado à música; o casal clandestino Hank e Larry, papéis de Tuc Watkins e Andrew Rannells; e o prostituto burro e sarado vivido por Charlie Carver, contratado como homem-objeto de Harold. Fecha a roda Alan, o ex-parceiro de Michael, encasulado num casamento heterossexual que o leva ao desespero, excelente contraponto melodramático de Brian Hutchison.
Uma brincadeira sugerida pelo patrono do convescote anima a noite, até que, entre indiretas sobre calvícies iminentes, ganho de peso combatido com barbitúricos, o pânico de envelhecer e a solidão que fustiga especialmente aqueles que não cabem na fôrma, o clima esquenta para além do recomendável. Mantello é capaz de dominar a verborragia do grupo — que decerto incluiu uma montanha de cacos no texto de Crowley — e conduzir a trama para o encerramento poderoso que ainda hoje a destaca. Transcorridas cinco décadas, “The Boys in the Band” continua atual como um retrato amplo da segregação velada (ou nem tanto), também entre pessoas com interesses e aspirações em comum. Politicamente incorreto, o filme conserva a picardia do formato de origem, o teatro, seu grande trunfo diante de certas catequeses em que se tropeça a todo instante por aí.
Filme: The Boys in the Band
Direção: Joe Mantello
Ano: 2020
Gênero: Drama/Comédia
Nota: 9/10