Marçal Aquino e eu não somos amigos. Marçal Aquino e eu não pensamos da mesma forma. Marçal Aquino e eu talvez batêssemos de frente em muitas particularidades do vasto mundo que nos cerca e até do mundinho abafado compreendido pela literatura nacional, que parece estar — de novo — ajoelhado ante a fabulosa montanha produzida por Chico Buarque no transcurso de três décadas e meia de sua carreira como romancista (risos desbragados) e contista (risos circunspectos).
Pensou que eu fosse usar Aquino como isca para empenhar meus bites no saudoso Julinho da Adelaide, não é, leitora apressada, leitor afoito? Bem, seria uma honra (para ele) — e conto com meu bravo editor a fim de que encampemos essa briga num futuro breve, antes que Buarque compre a ABL. Por ora, preciso é falar de Aquino, cujo trabalho, aprecie-o eu ou não, sustenta-se por si só; lamentavelmente, o interesse por sua literatura que nesta ocasião desponta vem embrulhado pelo papel grosso da polêmica mais reles, meio de vida de certa elite (sim, elite) política que não vinga pelos próprios méritos e tem de estar recorrentemente investindo contra quem pensa, ou nem pensa tanto, uma vez que o Brasil nunca foi muito chegado ao negócio. Pensando-se ou não, muito ou quase nada, há que se expor certa canalha que se esconde atrás da lei para tentar solapá-la. Evitando-se que nos respingue na cara a lama da decomposição moral em que chafurda essa gente perigosa, símbolo de um país que, definitivamente, não nasceu para a ordem e tanto menos para o progresso, é forçoso morder certos corações em esquinas suspeitas.
Mas a que diabos me refiro, afinal? Recebi um vídeo em que um tal Gustavo Gayer — este, sim, um caçador de cliques para ninguém botar defeito — solta mais uma de suas flechas envenenadas visando a tenebrosas transações (ops!), publicado em sua página oficial no Instagram. Ali, Gayer, esse obelisco à moral e aos bons costumes, acusa Aquino de corromper adolescentes de catorze anos. Aquino, esse devasso, entrou no bolo de contrabando, porque a guerra santa que Gayer, deputado federal pelo PL de Goiás, quer travar é contra a escolha de determinados textos do escritor paulista nos enunciados das questões do processo seletivo da Universidade de Rio Verde, a UniRV, instituição particular de ensino superior de Rio Verde, no sudoeste goiano.
Quando soube que mais um político ganhava os holofotes às custas do reacionarismo hipócrita que marcha a galope sobre a sensatez e o equilíbrio mental da República da Sunga, de pronto me ocorreu o patético episódio em que o senador Eduardo Girão, do Partido Novo do Ceará, tentara dar ao ministro Silvio Almeida, dos Direitos Humanos, a réplica de um feto de doze semanas, induzindo a opinião pública a comprovar que ele se opõe à prática; Almeida não só não coonestou a pantomima como o espinafrou, merecida e civilizadamente. O aborto, salvo nos casos previstos em lei, é a atitude mais repulsiva a que um indivíduo pode dar azo; contudo, a forma como a ultradireita se apropria dessas pautas é tão abilolado — para não dizer também tacanho, falso, vexatório, asqueroso — que é justamente dessa pocilga que a esquerda, não menos desonesta, floresce e se alastra. Já conhecia o currículo de formidáveis patriotadas do ilustre membro da Câmara Alta, mas admito que só agora tomei conhecimento da existência de Gayer, cujo apetite pelo poder só não é maior que a supina capacidade de dizer asnices, e, claro, que seu entendimento muito idiossincrásico do que vem a ser educação, formação intelectual, livre pensamento, conceitos sonhados por Platão (428-348) nos primórdios do que hoje se transformaram nas universidades — aos quais a academia brasileira renunciou há pelo menos trinta anos.
Eu jamais poderia dar aula numa universidade nacional nos moldes em que estão hoje, e nem Platão. Tenho a mania de preservar um senso de curiosidade que me safa de enrascadas e me atira no olho de furacões existenciais de que logo saio, graças a meus parcíssimos conhecimentos e à fé. Numa dessas, fui a uma livraria, a melhor do ramo, determinado a adquirir a biografia do poeta lusitano Fernando Pessoa (1888-1935), escrita pelo jornalista americano Richard Zenith, mas, bem ao lado, uma publicação que o gerente decerto julgou-lhe complementar me chamava. “Morda Meu Coração na Esquina”, as obras completas do poeta paulistano Roberto Piva (1937-2010), piscava para mim, literalmente — esses editores, sempre com o velho truque de contrapor letras em tom quente num fundo de cor fria, que golpe baixo! Lembro-me de ter me deixado seduzir com tal expediente uns quinze anos atrás, quando assim ganharam vida as crônicas de Nelson Rodrigues (1912-1980) na coluna “A Vida Como Ela É”, colocadas na praça pelo jornal “Última Hora” entre 1950 e 1961. Comprei “Morda Meu Coração na Esquina”, por óbvio, e me também me permito escandalizar com a pornografia do doce e maldito Piva, que conhecia na mesma proporção em que Gayer, que deveria poupar o Brasil e os adolescentes brasileiros de seus cuidados, e ler mais, ainda que eu saiba que não o fará: vossa excelência precisa da estupidez, do cinismo e da retidão sem lastro na vida prática a fim de tecer seus ditirambos patranheiros em nome do que nunca poderá ser.
PS. Depois de já ter terminado de escrever este artigo, soube, sem qualquer surpresa, que a UniRv retirou Aquino de sua lista de autores de referência. Eu, de minha parte, mantenho tudo quanto disse.