Os métodos comprovadamente falhos das forças policiais num futuro apocalíptico ainda distante, porém dia a dia mais verossímil, entram na conta das inúmeras mazelas denunciadas por “Elysium”. No entanto, o filme de Neill Blomkamp vai além. Numa das mais bem contadas histórias sobre a incerteza que ronda a população do mundo inteiro, agravada por chagas muito próprias da pós-modernidade, o diretor lança mão de emoções díspares e complementares entre si, como o amor e o ódio de uma humanidade bestializada, consumida pela imprecisão mais cruel, a de não saber se resiste a novas intempéries da natureza e do destino, e por quanto tempo, tornada ainda mais melancolicamente severa frente à realidade inescapável de que o dinheiro é o critério que poupa alguns e perde muitos.
Esses cenários cada vez mais sombrios, em que o homem se mostra implacável quanto a destruir tudo quanto existe e ainda consegue matar no ovo o que poderia vir a ser o princípio de tempos mais auspiciosos, há um consenso entre a comunidade científica e observadores das coisas de seu tempo, leigos, mas bastante perspicazes, quanto a esperar o pior. Estiagens que não dão trégua e fustigam colheitas, encarecendo sobremaneira o preço da comida; enchentes que também arruínam a lavoura, mas deixam um rastro de milhares de desabrigados; déspotas cujas tentações liberticidas projetam-se para muito mais longe que as fronteiras de seus territórios, defendidos à custa de guerras covardes; pragas que surpreendem a humanidade no contrapé e aniquilam milhões até que se descubram antídotos: são tão diversas as possibilidades de que tudo saia do controle irremediavelmente que a simples menção ao assunto gera um mal-estar instantâneo, com que a maioria das pessoas não sabe lidar.
“Elysium” é um apanhado de sequências primorosas, em que os efeitos especiais de uma equipe de mais de cem técnicos ajudam Blomkamp a imprimir todo o realismo que tramas assim demandam. As escolhas que o diretor-roteirista faz no que diz respeito à narrativa propriamente, bem como, por óbvio, ao apuro estético tornam o enredo, mais que digno de crédito, completamente orgânico. Em 2154, ninguém em sã consciência viveria na Terra — e essa é uma alternativa, mas não para todos. O lugar a que o título se refere é uma colônia extraplanetária vedada a assalariados, trabalhadores sem qualificação que lhes permita arrumar um bom emprego e manter-se a salvo da marginalidade e do crime, ou qualquer outra categoria de desvalido social. Entre eles está Max, o ex-ladrão de carros vivido com entrega comovente por Matt Damon. Hoje regenerado, com uma fobia da prisão que apenas os verdadeiramente arrependidos desenvolvem, Max conseguia avistar Elysium do bairro humilde onde cresceu, numa Los Angeles que hoje espelha na aparência a degradação moral com que sempre convivera bem. Blomkamp prepara seu público para o que virá a seguir mediante flashbacks em que o pequeno Max, criado num abrigo para órfãos, conversa com a freira a quem se afeiçoou sobre a passagem do tempo, lances que se prestam a compor o eu-lírico do protagonista.
Como lhe diz o chefe, entre paternal e sarcástico, Max tem sorte de ter conseguido uma colocação numa fábrica de exoesqueletos, usados como uma extensão do corpo pelos humanos do século 22, e, justiça se lhe faça, ele valoriza a oportunidade, tanto que, quando uma máquina apresenta um bug, o chefe o insta a se embrenhar pelos intestinos da engenhoca e reparar a avaria. Pressentindo o revés que efetivamente acontece, o anti-herói de Damon sofre uma descarga de radiação que pode matá-lo em cinco dias, a não ser que consiga uma passagem para Elysium, o novo mundo, a terra que deveria servir de refúgio aos homens de verdade, onde tratamentos de moléstias como essas são corriqueiros e as chances de êxito, reais.
Esse é o gatilho para o segundo ato, em que entram em cena Frey, a ex-amiga de infância com histórico semelhante ao do personagem central, mas que conseguiu superar o abandono e se tornar enfermeira, e Spider, espécie de coiote, intermediário que transporta terráqueos para Elysium clandestinamente. Os dois brasileiros do elenco estão em campos opostos. Enquanto Alice Braga dá vida a uma mocinha cheia de conflitos — conformar-se com a morte lenta e dolorosa da filha pequena, sucumbindo a uma leucemia terminal, é, decerto, o maior, mas não o único —, Wagner Moura parece muito confortável no papel do antagonista clássico, mau e sem remorso.
Da mesma forma em que “Distrito 9” (2009) Blomkamp tratava do apartheid como uma hecatombe social de proporções que extravasavam o contexto de sua África do Sul de origem, aqui o diretor entende a pobreza mais grave como a tragédia que de fato é, dando eco ainda a produções icônicas da história do cinema a exemplo de “Metropolis” (1927), de Fritz Lang (1890-1976), ao abordar a coisificação do homem e o lumpemproletariado. Na esteira de “Elysium”, o diretor ainda trouxe à luz “Chappie” (2015) e “Rakka” (2017), também marcados por críticas mordazes (e pertinentes) ao capitalismo, sua solidão e seus crimes, assunto que parece ter virado para ele uma benfazeja obsessão.
Filme: Elysium
Direção: Neill Blomkamp
Ano: 2013
Gêneros: Thriller/Ficção Científica/Drama/Ação
Nota: 8/10