A fascinação pela distopia não parece ter data de validade na indústria do cinema. Em períodos cíclicos, a temática emerge das cinzas, remexendo as profundezas de um poço desolado em busca de mais munição para explorar os constantes desafios à sobrevivência humana. A obra “Onde Está Segunda?” não foge à regra, lançando luz sobre o argumento cada vez mais pertinente da degradação ambiental devido ao consumo voraz dos recursos naturais. Com um roteiro efervescente de Kerry Williamson e Max Botkin, o diretor Tommy Wirkola explora habilmente a narrativa, potencializada pela tecnologia do cinema moderno.
A multiplicação de personagens, um fenômeno aperfeiçoado pela tecnologia e popularizado por obras como a telenovela brasileira “Mulheres de Areia”, encontra aqui uma nova dimensão. Os avanços da computação gráfica permitem elevar esse recurso a patamares inimagináveis, auxiliando na criação de cenários, maquiagem e outros elementos que, apesar de sua beleza e intricado detalhamento, contribuem ironicamente para o esgotamento dos recursos do nosso planeta.
Em “Onde Está Segunda?”, Wirkola ecoa a essência de “Filhos da Esperança” de Alfonso Cuarón, alertando para a decadência humana impulsionada pela exploração desmedida da natureza. Desenvolvendo uma sátira política mordaz, o filme adota uma postura ousadamente irracional para destacar a imposição de políticas autoritárias que restringem as famílias a um único filho, uma medida que, na prática, equivale a um genocídio disfarçado.
A obra, protagonizada por sete irmãs gêmeas, encarna esse desafio. Criadas secretamente por seu avô Terrence Settman, interpretado por um astuto Willem Dafoe, elas devem se passar por uma única pessoa para sobreviver nesse mundo implacável. A tensão aumenta quando o aparelho de segurança nacional começa a suspeitar que Karen, a identidade que compartilham, não é uma filha única. Nesse ponto, o confronto entre Noomi Rapace, que interpreta magistralmente as sete irmãs, e Glenn Close, na pele da administradora do regime autoritário, Nicolette Cayman, é uma demonstração memorável de talento no cinema contemporâneo.
“Onde Está Segunda?” habilmente traça um retrato assustador de superpopulação e escassez de alimentos, ampliado pela multidão de extras. Gradualmente, os sacrifícios que as protagonistas fazem em nome do bem comum são revelados, incluindo a forma como negligenciam suas vidas individuais. Wirkola orquestra sua história com momentos de reflexão e doses de terror, como uma cena inquietante em que Terrence é forçado a cortar o dedo indicador de cada neta para manter sua farsa. Este é apenas um fragmento de uma vida repleta de tormentos, marcada por uma liberdade severamente reprimida.
“Onde Está Segunda?” não é uma mera obra de arte para apreciação descompromissada ou entretenimento puro. O filme exige do espectador uma compreensão aprofundada para desvendar sua sutileza complexa. Ao reproduzir um cenário de restrição de liberdades e direitos em nome de uma causa supostamente nobre, Tommy Wirkola, de maneira discreta, adverte contra os perigos do politicamente correto, inclusive em sua vertente ambiental (e igualmente totalitária). A mensagem é clara: o progresso não se alcança suprimindo o pensamento livre, que, apesar de suas dificuldades e obstáculos, nos trouxe até aqui.
O diretor mostra-se adepto ao equilíbrio entre as sequências de ação e a exposição detalhada das idiossincrasias psicológicas de cada personagem. Ele explora o talento excepcional de Noomi Rapace, que habilmente dá vida a sete personalidades distintas, cada uma com suas preferências, maneirismos e até mesmo cortes de cabelo, apesar de um pequeno deslize no contínuo uso da mesma cor de esmalte, desconsiderando a individualidade de cada personagem. Rapace apresenta uma atuação impressionante, fornecendo ao espectador material suficiente para se identificar com sua personagem favorita e torcer por ela, especialmente se essa personagem for a Segunda do título, que desaparece misteriosamente após um confronto com as autoridades.
“Onde Está Segunda?” é, em última análise, uma obra que aproveita a estética distópica para explorar questões contemporâneas profundas. A superpopulação, o esgotamento dos recursos e a vigilância do Estado são temas centrais, ilustrados com força através de cenários repletos e personagens multifacetados. Apesar de seu tom de sátira política, o filme nunca se desvia de seu objetivo principal: alertar o espectador sobre os perigos inerentes à restrição das liberdades individuais, seja qual for a causa que se pretenda defender.
Filme: Onde Está Segunda?
Direção: Tommy Wirkola
Ano: 2017
Gênero: Ficção científica/Ação
Nota: 9/10