O filme “O Regresso” (2015), dirigido por Alejandro González Iñárritu, revela parte das feridas de uma nação forjada em sangue, composta por caçadores, mercenários, índios e homens infelizes que se deixavam iludir por promessas de algum dinheiro, mediante muito sacrifício, renúncia e humilhação. Curiosamente, um dos filmes que melhor discorre sobre as desventuras dos primeiros yankees é dirigido por um mexicano — uma das muitas ironias que o cinema nos reserva. González-Iñárritu percebeu na narrativa, adaptada do romance de Michael Punke, publicado em 2002 e nunca lançado no Brasil, a oportunidade de discutir os Estados Unidos de uma maneira que poucos conhecem. O cineasta conduz a trama a partir da biografia de Hugh Glass, um caçador que sobrevive ao ataque de uma ursa parda que defendia seus filhotes, é dado como morto, abandonado, enterrado vivo, mas retorna do inferno, sedento por vingança. González-Iñárritu e sua equipe se dedicaram à história peculiar de Glass por cerca de um ano, filmando em locações no Canadá e privilegiando o uso de luz natural, um dos grandes méritos da produção e obra de Emmanuel Lubezki, ganhador do Oscar de Melhor Fotografia por “Gravidade” (2013), em 2014, “Birdman” (2014), em 2015, e, claro, “O Regresso”, em 2016, sendo o único a ganhar uma estatueta na categoria por três edições consecutivas.
O western antes do western. Essa poderia ser uma definição simplista de “O Regresso”, que proporcionou a Leonardo DiCaprio o grande papel de sua carreira, ainda não superado — pelo qual também recebeu o Oscar de Melhor Ator. González-Iñárritu, também premiado como Melhor Diretor pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, realizou o que poderia ser classificado como sua obra-prima na forma de um mergulho no coração (obscuro) dos Estados Unidos. Antes do western, antes do eldorado — na falta de ouro, os exploradores se contentavam com as peles, moeda de troca com a qual eram feitas todas as transações comerciais da época, entre americanos, indígenas, espanhóis e, em menor proporção, os próprios mexicanos —, não havia glamour. O diretor aproveita a atmosfera dos Estados Unidos como uma terra mítica para elaborar teses interessantes sobre a origem do poderio americano, um país ainda a ser conhecido, para solidificar uma identidade, mas desde sempre atento à necessidade de estabelecer vínculos comerciais, um rascunho do que viria a ser o capitalismo — primeiro o americano e, por extensão, o praticado nos quatro cantos do globo — em seus melhores (livre mercado, possibilidade do indivíduo desenvolver seus talentos para ganhar dinheiro, concorrência) e piores aspectos (injustiça, exploração, subjugação de quem não se destaca o suficiente).
A odisseia de El Negro sobre um homem e sua determinação em sobreviver fala do ressentimento, que decai em ódio e na busca por reparação. Francis Bacon (1561-1626), o primeiro grande ensaísta inglês, publicou três versões de seus “Essayes or Counsels” (1597, 1612 e 1625), sendo “Of Revenge” (“sobre a vingança”, em tradução livre) o texto mais famoso. Nele, Bacon admite a vingança como uma forma selvagem de se fazer justiça, um desafio significativo à constituição de um Estado de direito. Já em 1789 — apenas 13 anos após a independência —, os Estados Unidos, dotados de uma das constituições mais sucintas e eficazes de todas as democracias do Ocidente, começaram a ter uma vaga noção do que viria a ser conhecido como império da lei. No entanto, a extensão de seus domínios e sua inexperiência como povo eram grandes obstáculos para fazer prevalecer a razão sobre a barbárie, o que é claramente demonstrado no personagem de Tom Hardy, o grande antagonista do filme.
Em “O Regresso”, a natureza humana se funde com a natureza do mundo, cada uma revelando seu lado mais selvagem, mais indomável e mais cruel. Um filme que lembra ao público que as verdadeiras feras estão muito bem escondidas.
Filme: O Regresso
Direção: Aventura/Faroeste
Ano: 2015
Gêneros: Alejandro González Iñárritu
Nota: 10/10