Domenico Starnone me desassossegou, e isso sabota o personagem que ando construindo para mim: do tiozão de meia-idade apreciador da lentidão, depois de anos de pressas inventadas para agradar gente à toa. Li com volúpia três novelas dele; “Dentes”, “Segredos” e “Laços”, nessa ordem, em pouco mais de uma semana cheia de dias úteis. O colapso da minha disciplina para flanar entre parágrafos me alimentou certa mágoa com o marido da Elena Ferrante.
Nessas conversas que travamos para quebrar a solidão da leitura, confidenciei ao CW, editor da Revista Bula, minha fome adolescente pelo texto do italiano. Em parte, por gentileza, outra pela convicção de que a escrita nada mais é do que jogar sobre os demais a nossa dor, me fez um convite: “Fabrício, você bem que poderia escrever algo sobre o Starnone”. No socorro do amigo, veio a chave para a leitura que eu fizera a quente, em ritmo alucinado, sem o desvelo que se espera de quem vai parir um texto depois. Nesse clima, ainda pulsante, compartilho impressões.
A ideia aqui, de um diálogo entre as obras, me parece sutil, porém cabe como metáfora do impulso literário dos três livros. Nós necessitamos de ordem, imploramos por limites institucionais, enquanto gastamos uma energia vital tentando dar um drible nessas mesmas convenções. Os personagens parecem todos divididos entre o acomodamento pequeno-burguês e as urgências nascidas da completa incapacidade humana para a satisfação. Reina uma claustrofobia, paradoxalmente respirável. Porque o homem starnoniano finge tolerância, se adapta, até enxerga beleza e extrai fruição estética do aprisionamento. Mas sempre fica em pé uma pergunta: haveria outro jeito de se viver a vida?
Segredos
Fico encantado como Starnone, ao escarafunchar a resposta, verte uma prosa ágil, lírica, sem afetações, que nos conduz a um lugar ausente de certezas. Os livros são narrados em primeira pessoa, com vozes que se intercalam, em distribuição assimétrica. Para quem como eu patina em exatas, me explico: Em “Segredos”, o capítulo Primeiro Relato é contado pelo narrador em 115 páginas. Professor de escola pública na periferia de Roma, Pietro disseca nesse espaço a efervescente paixão com uma ex-aluna, Teresa.
Uns dias antes do rompimento da relação, um confessa ao outro segredos sórdidos que, se revelados, representariam a ruína moral de ambos. O temor de vazamento das confissões ameaça a cálida estabilidade construída por Pietro nas décadas seguintes, quando casa com uma colega de escola, tem três filhos e nos anos 70 conquista algum prestígio como o que poderíamos hoje chamar de influencer de pedagogia. Pietro vira uma celebridade para assuntos de educação pública, ou seja, tem muito a perder caso pactos de silêncio juvenis sejam rompidos.
Quando, no Segundo Relato, o foco narrativo da história passa à filha dele, Emma, tudo se resolve em 22 páginas. Há, nesse desequilíbrio, um privilégio ostensivo a uma versão da história. Mas o contraponto põe o narrador na esfera do inconfiável, num recurso machadiano que vai se repetir nos demais livros. Em tempos de culto desvairado à objetividade, à presunção inútil de neutralidade, dizer o óbvio tem mérito: todo relato requer ponderação, sobretudo aquele intermediado pela memória.
Pietro, de “Segredos”, também nos mostra que todo desapego tem algo de cinismo. A vaidade se impõe. A idealização de uma vida plácida, livre de apetites por glórias, se perde ao primeiro sinal de tédio. O desapego exige disciplina. Desejar é muito mais fácil. Divido aqui um excerto onde a tensão escapa por entre as frases, como a desdizer o que se leria de forma apressada. Obviamente, para Nadia, mulher de Pietro, ela própria às voltas com ambições acadêmicas vãs e sufocada pela condição de mulher e mãe, a visibilidade do marido implicava em renúncias.
“Ela considerava meu sucesso um perigo para nosso casamento, para nossos filhos e, acima de tudo, um erro que eu estava comentando contra ela: eu, que nunca tive ambições, tinha sido premiado pelo destino, e ela, que cultivara várias, havia sido jogada para trás sem poder me provar que, em seu campo, era uma pessoa de qualidade.”
Starnone me fisgou violentamente porque narra a partir da velhice. O aturdimento dos personagens não é fruto de mera fabulação. Nasce do sincero escrutínio das desilusões que a vida traz para quem envelhece com dignidade, sabendo-se cada vez mais impotente. O autor segue prolífico perto dos 80. É na relação difusa com os aprisionamentos que cada personagem elabora a própria experiência.
Laços
A mais asfixiante das novelas desse texto é “Laços”. Ali, temos o casal Aldo e Vanda perpassando as décadas inertes, num afeto mecânico. Podia ser uma história de perdão, redentora, não fosse apenas um atavismo covarde. Nos anos 60, com os dois filhos pequenos, Aldo se embriaga da contracultura rebelando-se contra a instituição da família de uma forma cretinamente hedonista: indo viver com a amante Lidia um romance livre de quaisquer chateações matrimoniais. Quando o entusiasmo da paixão arrefece, e é meio comum que isto haja, Aldo volta quase que por efeito da gravidade ao lar com Vanda.
O primeiro capítulo é epistolar. Vanda dispara uma saraivada de cartas a Aldo, em absoluto desconsolo pelo abandono. No segundo capítulo, já na velhice, o casal vai passar férias na costa da Itália e, no retorno à Roma, encontra o apartamento selvagemente revirado. Mais do que a angústia de ver o lar vilipendiado, fica o temor de que a intimidade devassada exponha esse passado indigesto. Há cartas e polaroides como resquício desse hiato do casamento. A nervosidade típica de narrativa policial vai se diluindo na mágoa, que entra em erupção entre os dois. Disse a Vanda, na página 115.
“Agora que estou perto dos 80 anos, posso dizer que não gosto de nada da minha vida. Não gosto de você, não gosto deles (os filhos), eu mesma não gosto de mim.”
Aldo entende, resignado, que “o amor é um recipiente no qual enfiamos tudo”, insuficiente para legitimar as caixas que a sociedade sugere para nos enfiarmos. Sempre nos aborreceremos ali dentro, por mais espesso que seja o verniz de afeto. Não pude deixar de lembrar de outro autor que me desassossega, nesse caso não pela pressa com que o leio, mas pelo tormento da mensagem. Em “Demian”, Hermann Hesse nos apresenta um jovem dividido entre o conforto do mundo luminoso dos pais e a excitação com o lugar imperfeito e violento para além dos muros do jardim. Quando verte “O Lobo da Estepe”, oito anos depois, o protagonista já na casa dos 40 vive uma rebeldia tardia embebido da atmosfera lisérgica da arte, do teatro mágico, sem, no entanto, renunciar a um milímetro do conforto da vida burguesa. Com o perdão da liberdade interpretativa, creio que os homens de Starnone assumem de um jeito menos esotérico os dilemas de Emil Sinclair e Harry Haller. Na velhice, se dão conta da impossibilidade, inclusive do amor, de nos redimir da inclinação ancestral ao desajuste. E tudo bem.
Dentes
Li primeiro, falei por último. Minha escolha diz algo sobre “Dentes”. Embora a cena inicial da cinzeirada dilacerando os caninos do narrador já nasça clássica, falta ao protagonista a consistência de um Aldo, de um Pietro. Temos um sujeito meio infantilizado, inseguro, regido por pulsões de ordem sexual. É difícil de gostar dele, mas é forçoso saudar o ocaso do macho que ele representa através da pena autoirônica de Starnone.
A insegurança do cara nos desviriliza. É meio libertador para nós, meninos, nos vermos de vez em quando no papel de palhaço, depois de avalanches de confete imerecidas ao longo da história da literatura.
Nesses tempos de institucionalização de tudo, quando a gente não sabe se comemora ou acha patético o café do Ailton Krenak com o Merval Pereira na Academia Brasileira de Letras, Starnone faz um enorme favor ao lembrar-nos de nossas fraquezas diante do impuro. Talvez não devêssemos aspirar tanta santidade em favor do “eu, esse pronome pessoal caído na engrenagem do universo como um parafuso”.
Tentei algo de lavra própria para dar o nó final ao novelo que vim desenrolando até aqui, mas não consigo dizer nada mais inteligente do que Jhumpa Lahiri, tradutora de Starnone para o inglês. No prefácio de “Laços”, ela escreve: “A vida é aquilo que trai o recipiente, aquilo que se derrama”.
Que nunca nos falte lucidez para saber quando transbordar.