Foi aprovado, pela Câmara dos Deputados, em dezembro de 2023, o Projeto de Lei (PL) 2687/2022 que classifica o diabetes mellitus tipo 1 como deficiência, para todos os efeitos legais. A proposta agora tramita no Senado Federal e, se aprovada, pode trazer aos diabéticos tipo 1 acesso a tratamentos mais tecnológicos e direitos previstos no Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Fernando Valente, endocrinologista membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), afirma que a organização é favorável à aprovação do PL por entender que isso traria aos diabéticos acesso a tratamentos que, atualmente, ainda não estão disponíveis. “No Brasil, a pessoa com diabetes tem acesso a uma agulha ou seringa, por dia, para aplicação de insulina, tem de três a quatro fitas reagentes para medir a glicemia, mas o problema é que os estoques falham, tanto com as fitas reagentes e agulhas quanto para insulinas”, diz.
O médico explica que o corpo precisa o tempo todo de insulina no sangue para evitar a produção de cetona, que deixa o sangue ácido e causa náuseas, dor de barriga, vômitos e pode levar à morte por cetoacidose diabética. “Quem tem diabetes tipo 1 tem uma doença autoimune, ou seja, o pâncreas é atacado pela própria imunidade e a produção de insulina cai para zero. Se não começar o tratamento imediatamente, não tem vida mais”, observa.
No tratamento, segundo Valente, antes das refeições, a pessoa precisa saber a quantidade de glicose no sangue e o quanto de glicose ela vai ingerir na refeição para que ela aplique a insulina suficiente para processar o alimento. O endocrinologista entende que, apesar de algumas tecnologias para o tratamento da doença estarem previstos no SUS, o Brasil poderia oferecer muito mais qualidade de vida aos diabéticos tipo 1, não fosse a falha no estoque, a restrição de acesso à tecnologias melhores, entre outros pontos.
“No Brasil, a expectativa de vida de uma pessoa sem diabetes é de 78 anos. Uma criança que desenvolve diabetes tipo 1 aos 10 anos de idade tem expectativa de vida de 52 anos, 26 anos a menos do que uma pessoa sem diabetes. Nos países de alta renda, a diferença na expectativa de vida entre um diabético e um não diabético é de 12 anos. Olha só como a gente pode fazer mais pelas pessoas com diabetes tipo 1”, afirma Valente.
No texto do PL, a autora, deputada Flávia Morais (PDT-G0), cita como exemplo países como os Estados Unidos, Reino Unido, Espanha e Alemanha, em que o diabetes tipo 1 é classificado como deficiência. Valente destaca que, na Alemanha, crianças de até sete anos têm acesso a bombas de infusão de insulina, que, diferente das canetas e seringas de insulina, conseguem entregar microdoses. “Para uma criança, uma unidade de insulina pode fazer a glicose baixar muito, causando mal-estar. A bomba torna possível aplicar microdoses de insulina, por exemplo, 0,1 unidade; 0,15; 0,2. Isso facilita bastante o tratamento de crianças muito pequenas”, informa o endocrinologista.
No Brasil, as bombas de infusão de insulina não estão disponíveis para todas as crianças portadoras da doença. “Agora, mais importante ainda, é a medição da glicose. Porque se a pessoa não mede nada, não tem como aplicar a dose correta. Seja por bomba ou seja por múltiplas doses de insulina, aplicação com caneta ou agulha ou seringa. Os países de alta renda estão com uma expectativa de vida muito maior porque tem mais acesso a sensores de glicose”, ressalta Valente.
O médico explica que o sensor mede, de minuto em minuto, a quantidade de glicose no líquido entre as células. Uma das diferenças do sensor para as fitas reagentes, é que ele informa se a glicose está estável, caindo, caindo muito, subindo ou subindo muito. Outra vantagem, segundo Valente, é que, “se a pessoa quiser ela pode escanear quantas vezes precisar que não gasta o sensor”.
A leitura dele dura 14 dias independente da quantidade de medições, diferente da fita reagente que não pode ser reutilizada. O endocrinologista afirma que o acesso ao sensor de medição de glicemia “aumentaria em sete anos a expectativa de vida saudável. Não é a expectativa de vida com um monte de problemas”.
Renata Severo, especialista em direito à saúde do escritório Vilhena Silva Advogados, explica que, em caso de aprovação do PL, o acesso a essas tecnologias não é automático, mas o Estatuto da Pessoa com Deficiência facilitaria que as demandas dos diabéticos fossem discutidas pela sociedade. “O estatuto traz vários direitos para as pessoas e elas, muito provavelmente, vão começar a exigir muito mais do que elas já exigiam antes, porque agora elas têm um estatuto específico que defende o direito à saúde”, diz.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência prevê, por exemplo, atendimento prioritário na tramitação processual e em procedimentos judiciais; na disponibilização de recursos, tanto humanos quanto tecnológicos, que garantam atendimento em igualdade de condições com as demais pessoas; entre outros aspectos.
Gustavo Daher, endocrinologista no hospital Albert Einstein, entende que, para além do avanço no acesso à saúde, com a aprovação do PL, aconteceria um avanço cultural. “Reconhecer que esses indivíduos têm necessidades especiais ajuda na inserção deles em vários locais”, afirma e continua: “Em uma escola, o diabético tipo 1 precisa ter a possibilidade de sair para medir a sua glicemia, precisa que os educadores saibam o que fazer caso isso aconteça. Você não pode coibir a pessoa de usar uma coisa que é vital para ela. Ou, em outros exemplos, a pessoa deve conseguir carregar livremente os seus insumos. Vira e mexe, as pessoas têm dificuldade com isso, por ser uma agulha, objetos cortantes, e ela tem que ficar se justificando para entrar num banco ou em aviões”.
Diabetes tipo 2
Questionados, os especialistas entendem não fazer sentido uma extensão da classificação de pessoa com necessidades especiais aos portadores de diabetes tipo 2. “Diferentemente do tipo 1, o diabético tipo 2 tem insulina produzida pelo pâncreas, mas não consegue absorvê-la adequadamente por uma resistência ao hormônio. Muitas pessoas com diabetes tipo 2 conseguem, através da mudança de estilo de vida, com perda de peso, alimentação saudável, prática de exercícios físicos, gerenciamento do estresse e mais os remédios que o SUS fornece, levar uma vida sem limitações”, explica Valente
Segundo o médico, o risco de cetoacidose diabética e hiploglicemia grave é muito menor para os diabéticos tipo 2, já que eles ainda produzem insulina e os remédios, como o metformina, trazem menos risco para hipoglicemias. Já o diabético tipo 1, “se não começar o tratamento imediatamente, é questão de semanas para morrer. Então, é uma pessoa que precisa de um tratamento mais intensivo do que quem tem diabetes tipo 2”, observa Valente.
Além disso, Daher destaca que o diabetes tipo 1 “é muito mais raro, por isso também é mais factível colocar essa lei em prática”.