A regulamentação do trabalho de motoristas de aplicativo para transporte de passageiros, proposta no Projeto de Lei Complementar (PLC) n. 12/2024, em análise na Câmara dos Deputados, suscita importantes discussões sobre o crescimento dessa economia e seus impactos nas condições de vida e saúde de motoristas que atuam por meio de plataformas digitais e aplicativos de serviços. Nesse debate, a informalidade do mercado de trabalho, os altos índices de mortes por acidentes, consideradas pelo Ministério da Saúde uma forma associada com as violências, e o perfil dos trabalhadores e vítimas de acidentes no trânsito, cuja maioria são homens negros, são questões incontornáveis e que precisam ser consideradas para garantir melhores condições de vida e saúde para esses profissionais.
O PLC 12/24 estabelece a quantidade de horas de trabalho por dia e remuneração por hora, além de alguns direitos trabalhistas como auxílio-maternidade e contribuição ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). Proposta pelo Executivo Federal em março deste ano e aguardando votação pela Câmara dos Deputados, que estava inicialmente prevista para junho, o texto não inclui entregadores que prestam serviço por aplicativo. O Diagnóstico n. 4 – Condições de Vida e Saúde, produzido pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) em 2023 enfatiza a renda e o emprego como alguns dos principais determinantes sociais da saúde. No Brasil, a informalidade do mercado de trabalho é alta e persistente, próxima de 40% na média geral ao longo dos últimos dez anos. Ela é ainda maior entre pretos (43,4%) e pardos (47,0%), em comparação com brancos (32,7%), segundo dados do IBGE.
O trabalho informal frequentemente implica em condições de trabalho insalubres, baixas remunerações e extensas jornadas de trabalho. Segundo o Diagnóstico, esses aspectos podem desencadear morbidades e transtornos físicos e mentais, influenciando negativamente os resultados de saúde e as condições de vida: trabalhadores informais apresentam maior prevalência no estado de saúde classificado como “regular”, “ruim” ou “muito ruim” quando comparados aos trabalhadores formais.
Os motoristas e entregadores de aplicativo, em sua maioria, compõem esse quadro. Eles estão sob uma relação laboral sem vínculos empregatícios, com contratação de mão de obra sob demanda – ou seja, fazem parte da gig economy, que cresceu de forma significativa, sobretudo com a pandemia de Covid-19. Em levantamento recente, o IBGE estimou em 1,5 milhão o número de trabalhadores atuando por meio de plataformas digitais e aplicativos de serviços. Enquanto 44% dos ocupados no setor privado estão na informalidade, entre os trabalhadores que trabalham com essas plataformas, esse percentual era de 70%. Outra pesquisa aponta que esses trabalhadores são compostos em sua maioria por homens (95%) e negros (60%).
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil ocupa o quinto lugar no ranking de países com maior número de mortes no trânsito, ficando atrás de países como China, Índia, Estados Unidos e Nigéria. São mais de 30 mil vítimas fatais por ano, com pedestres, ciclistas e motociclistas representando o maior número delas. O Brasil estabeleceu a meta de reduzir pela metade o número de mortes e ferimentos no trânsito até 2030, meta alinhada internacionalmente com a segunda década do plano de ação da ONU para segurança no trânsito. No entanto, a tendência tem sido outra. Enquanto houve redução nas mortes por atropelamento, dados do Boletim Çarê-IEPS n. 3 apontam que a taxa anual de mortalidade por acidentes de motocicleta, após internação hospitalar, aumentou em 66% de 2010 a 2021, passando de 933 óbitos para 1.569 – o que representou cerca de 4 perdas diárias de vidas de motociclistas em 2021.
O Ministério da Saúde estima que as internações por lesões de trânsito custaram ao SUS R$282 milhões em 2021, sendo que 59% desse custo é referente a internações de motociclistas. Segundo o mesmo boletim do Ministério, o perfil de motociclistas que são vítimas fatais de acidentes no trânsito são homens (88,1%), negros (64,9%), de baixa escolaridade com 8 a 11 anos de estudo (39,6%) e jovens, com idade entre 20 e 29 anos (30,8%).
Mais do que apontar a sobremortalidade de motociclistas negros e jovens, o Boletim Çarê-IEPS n. 3 revela que, a partir de 2014 e, principalmente de 2016, as taxas de mortalidade e internação de negros, por acidentes de motocicletas, passam a se descolar das taxas de brancos, mostrando taxas para negros superiores em cerca de 60% às taxas para brancos em 2021. Esses resultados, por um lado, refletem a melhora no registro do quesito raça/cor no sistema de informações aliada ao boom de aplicativos de entrega, cuja maior parte dos trabalhadores são homens negros. A melhoria da qualidade do preenchimento do quesito raça/cor nos sistemas de informação do SUS deixa evidente a relevância da raça e etnia como determinante social da saúde, sendo essenciais para analisar as desigualdades raciais em saúde e para focalizar as ações da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). Por outro lado, registram o aumento real de acidentes para um segmento da população já vulnerável.
Com essas informações se torna possível qualificar as políticas públicas voltadas para a população negra e prevenir acidentes de trânsito, por exemplo. Nesse sentido, uma ação implementada desde 2022, na cidade de São Paulo, tem apresentado resultados na redução de mortes e acidentes. A cidade criou, em algumas avenidas, uma sinalização experimental para que motos circulem com mais segurança entre os carros. A experiência foi positiva e está sendo ampliada, mas trata apenas uma faceta do problema. Enquanto o GT de negociação entre plataformas, entregadores e governo não entra em consenso para o avanço da regulamentação trabalhista da categoria e consequente ampliação de seguridade, e não são direcionadas ações de promoção de saúde voltadas especificamente para entregadores que prestam serviços por aplicativo, pagamos um preço alto e infinitamente mais caro que taxas de entregas de delivery: a continuidade do genocídio negro.
**Este é um artigo de opinião. A visão da autora ou autor não necessariamente expressa a opinião do Instituo de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).
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Marcella Semente é analista de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS); Julia Pereira é analista de políticas públicas do IEPS; Rony Coelho é pesquisador do IEPS.
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