Chelsea quis entender o que estava acontecendo com ela. E se debruçou em centenas de estudos, entrevistas com especialistas e dados científicos para descobrir como o cérebro de uma pessoa muda após ter filhos.
Ao longo das 472 páginas do livro, ela compartilha histórias pessoais e os resultados dessas pesquisas.
“A ciência não descreve a mulher como alguém naturalmente dotada de amor maternal que atende todas as necessidades do bebê de forma automática. Na verdade, ao ter um filho, nosso cérebro muda para garantir a sobrevivência do bebê até que nosso coração se conecte a ele”, afirma.
Ao refletir sobre o cérebro materno, Chelsea acabou caindo na constatação de que nossa sociedade se estruturou num modelo que delega a tarefa do cuidado às mulheres, como se fosse um destino biológico. E, com base na ciência, ela nos faz questionar e repensar esse formato.
A autora desafia a noção de instinto materno inato, enfatizando a adaptabilidade do cérebro de qualquer cuidador de bebês – pais, mães adotivas e as mães de casais do mesmo sexo, que, porventura, não engravidem.
Em uma chamada de vídeo, direto de sua casa no Maine, nos Estados Unidos, Chelsea conversou com a BBC News Brasil sobre maternidade, ciência, feminismo e necessidade de redes de apoio e políticas públicas para os novos pais.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
O título original em inglês do seu livro é Mother Brain (“Cérebro de Mãe”), mas você destaca que, segundo a ciência, o termo se refere ao cérebro de quem cuida, não apenas de quem dá à luz – o que pode incluir os pais, mães adotivas, casais não-binários ou do mesmo sexo. Mesmo assim, o peso do “instinto materno” ainda recai nas mulheres, em especial as que engravidam. Qual a explicação para isso?
Muitas das críticas que recebi por escrever este livro vieram de pessoas que dizem que eu estou tentando desacreditar o amor materno. E isso não poderia estar mais longe da verdade. Eu amo muito meus filhos. Escrevi um livro inteiro sobre como o cérebro muda para ajudar a cuidar melhor dos nossos filhos.
Mas a ideia com a qual realmente não concordo é a de que o instinto materno é algo inato, automático e exclusivamente feminino.
A ciência conta uma história bem diferente: o instinto materno é uma ilusão.
Passei muito tempo pensando sobre como essa mensagem da ciência foi uma surpresa para mim como uma nova mãe. Por que não era algo sobre o qual já estávamos falando?
As estudiosas feministas já sabiam e vêm discutindo há muito tempo: esse conceito não vem da ciência, mas de ideias religiosas e morais sobre o que é uma mãe e o que é uma mulher.
Entendo que é algo que nos foi transmitido de geração em geração e é difícil de combater, em parte porque sentimos o poder da maternidade dentro de nós. E esse poder foi chamado por tanto tempo de instinto materno que é automático repetir. Mas, na verdade, é algo poderoso sim, mas não instintivo.
Para esse conceito ser reproduzido por tantos séculos, alguém está se beneficiando dessa ideia – e não parecem ser as mulheres. Como acha que podemos quebrar esse mito?
Essa é a pergunta de um milhão de dólares, não é?
Acho que uma maneira importante de mudar isso é continuar falando sobre isso, seja qual for o papel que desempenhamos na sociedade. No meu caso, foi como escritora. Mas seja você cientista, político ou líder empresarial, precisamos usar fatos e evidências para mudar essas narrativas.
Aqui nos Estados Unidos atualmente, mulheres como eu – mães que estão escrevendo sobre essa narrativa mais verdadeira da parentalidade (e da maternidade), recebem muitas críticas de conservadores e de homens no poder. E penso que recebemos essas críticas, em grande parte, porque algo está funcionando. Ter essas conversas mais honestas ameaça o poder estrutural do patriarcado.
Os Estados Unidos estão passando por um momento político intenso, com uma eleição presidencial em que os direitos reprodutivos das mulheres são uma das pautas mais quentes. Como você acha que os estudos do seu livro podem ajudar a assegurar o direito das mulheres de escolher serem ou não mães?
Grande parte do que motiva ativistas antiaborto é a ideia de que as mulheres são destinadas a serem mães, que foram feitas para isso e que, naturalmente, já têm tudo o que precisam para isso. E desconstruir essa crença é uma parte importante.
E é por isso que, por exemplo, aqui nos Estados Unidos, temos essa luta por justiça reprodutiva e acesso ao aborto, mas não temos licença maternidade remunerada ou creche acessível. Porque muitos pensam que nascemos prontas. Não temos muito do que é necessário para criar uma criança, porque existe essa ideia de que as mulheres já têm tudo.
Como podemos convidar os homens para essa conversa?
Algo que me anima muito é que meu marido é um pai muito mais envolvido do que meu pai era. E essa é uma tendência entre muitos homens.
Não quero desconsiderar o poder particular que a gravidez tem, pois é uma experiência fisiológica distinta. Mas o que a ciência está apontando agora é que os mecanismos são um pouco diferentes nos pais e outros cuidadores não gestacionais, mas se eles também vivenciam essa exposição aos bebês, experimentam mudanças hormonais e cerebrais.
Homens talvez ainda não sejam envolvidos o suficiente, mas, ao cuidar mais, percebem duas coisas: os benefícios dessa interação tanto para a eles quanto para sua família e também os custos que nós, mães, conhecemos bem.
À medida que eles aprendem isso, se tornam melhores defensores de políticas públicas e sistemas de suporte. Passam, por exemplo, a pressionar por mais tempo de licença-paternidade para poderem passar tempo em casa com seus bebês.
Quando se fala de parentalidade, a maioria dos livros hoje em dia se concentra na criação dos filhos. No seu, o foco são as mães. Mesmo assim gostaria de saber: como você vê que as informações que temos sobre o cérebro materno afeta o desenvolvimento infantil?
Sim, foquei nas mães. Fiz isso de maneira intencional. Não queria que esse fosse um livro sobre desenvolvimento infantil, porque há muito material escrito nesse tema. Mas há um ponto importante que tem a ver com a saúde mental materna.
Sabemos que, geralmente, as crianças se saem melhor e são mais felizes quando os pais estão bem e felizes. E saber da ciência é uma parte importante para ajudar os pais a se conhecerem melhor e a saberem de que recursos precisam para se prepararem melhor para a gravidez e a paternidade.
Isso também muda os cuidados clínicos. Nos Estados Unidos, por exemplo, não fazemos um bom trabalho em identificar nas pessoas grávidas fatores de risco para depressão e ansiedade. Identificamos esses casos mais tarde, quando estão em crise, mas não fazemos a triagem antes.
A ciência pode contribuir para, durante a gravidez, fazermos uma avaliação mais completa de sua saúde mental, física e recursos sociais, e identificar o que pode ser adicionado para ajudar a mãe a passar por esse período de grande mudança no cérebro. Isso beneficiará as crianças se os pais forem melhor apoiados quando são recém-nascidos.
A outra parte de como isso pode afetar nossas famílias e lares é mais ampla e política. Como podemos criar as melhores políticas públicas para apoiar os pais nessa transição para a nova parentalidade?
Um dos muitos estudiosos citados em seu livro é a filósofa francesa Elisabeth Badinter. Ela foi uma das primeiras a falar sobre o mito do amor materno, nos anos 80, relacionando a ideia da história natural da maternidade com uma prisão. Como essa ideia evoluiu nos últimos 40 anos?
A instituição da maternidade e seus ideais, aqueles que nos dizem como uma mãe deve se comportar, estão profundamente enraizados em nós, foram mantidos geração após geração. Eles são uma parte importante da estrutura de uma sociedade capitalista, onde o trabalho não remunerado das mulheres é muito importante, mas não valorizado.
O trabalho de Elizabeth Badinter e tantas outras feministas nos anos 60, 70 e 80 foi muito importante em termos de abrir nossos olhos para o que estava acontecendo.
Agora adicionamos nuances a essas visões, e isso é essencial para nos aproximarmos mais da verdade sobre o que é ser uma mulher, tanto individualmente quanto de forma mais ampla.
Hoje em dia, existem mulheres em posições de liderança na ciência e na política que podem levar suas próprias experiências de vida sobre o que significa ser mãe. Levar para o laboratório ou para as universidades e fazer essas perguntas no contexto de suas próprias vidas.
Quais foram suas descobertas favoritas sobre maternidade e o cérebro materno durante sua pesquisa?
É comum aquela noção de que quando alguém está comprometido por se tornar mãe ou pai, durante a gravidez e a nova parentalidade, tende a ficar meio desatento ou esquecido. Por isso, gosto das pesquisas que analisam o cérebro de pais mais velhos.
Estudos do Reino Unido e da Austrália, que analisam grandes bancos de imagens cerebrais, compararam milhares de cérebros de pais e não pais. A conclusão é que os cérebros dos pais parecem mais jovens do que os de quem não tem filhos.
Embora ainda haja muito a entender sobre isso, os resultados sugerem que a paternidade oferece um estímulo social e mental intenso, com desafios constantes e em evolução.
É interessante trazer luz para isso: o fato de que o cérebro de alguém que cuida de um bebê muda para focar nos cuidados necessários que um recém-nascido precisa, mas de uma forma adaptativa. Muitas mulheres, porém, são demitidas após a licença maternidade, sob a ideia de que não trabalharão tão bem quanto antes. Mas os dados mostram que isso está errado, certo?
Exato. Assim como dizemos a aposentados para fazerem palavras cruzadas ou se envolverem na comunidade para manter o cérebro ativo, a paternidade é um engajamento constante, que nos desafia o tempo todo e ajuda a manter nosso cérebro afiado.
Vai contra a ideia de que nos tornamos menos competentes depois de termos filhos, quando as demandas de nossas famílias são tão altas.
Tem uma mensagem muito importante no livro como um todo: esse não é um processo degenerativo. Na verdade, é um processo profundamente adaptativo. Alguns estudos falam sobre habilidades cognitivas aumentadas, e coisas que sabemos que estão moldando como nos comportamos e percebemos nossas vidas e nossos filhos nesses primeiros anos. E isso pode ter ramificações a longo prazo que ainda nem foram totalmente exploradas.
E acho que isso é muito profundo e lindo, e me faz querer saber mais. Falo bastante sobre minha frustração por não haver mais pesquisas, mas há muito o que ser descoberto na ciência que ainda está por vir.
Como escrever este livro mudou você como mãe?
A grande mudança foi que me permitiu deixar parte da culpa de lado e entender que as dificuldades que enfrentei como mãe faziam parte do processo para ser a mãe que meus filhos precisavam. Me trouxe compaixão por mim mesma, sem a narrativa de que estraguei tudo.
Sei que cometo e cometerei erros, mas tudo bem, contanto que eu aprenda e faça melhor na próxima vez.
Criamos expectativas irreais sobre parentalidade, como se qualquer erro comprometesse o vínculo com nossos filhos. Mas o importante é aceitar, refletir e seguir tentando melhorar, ouvindo o que eles precisam. É um processo de aprendizado.
Minha ideia é ter toda a teoria, ouvir os especialistas, mas depois voltar meu foco para os meus filhos. Apesar de não serem mais bebês, eles estão sempre mudando, e como são muito diferentes entre si, procuro sempre observá-los. Leio bastante, absorvo o que faz sentido, mas, no fim, é essencial entender o que meus filhos precisam.
Sei que meu cérebro foi ajustado para me ajudar a cuidar deles da melhor forma possível, mesmo que eu nem sempre acerte.