Cultivar o otimismo, o perdão e a gratidão pode reduzir a hipertensão. É o que diz o estudo Feel apresentado no Congresso Brasileiro de Cardiologia, realizado em Brasília, de 20 a 22 de setembro. O trabalho já havia sido exposto na Sessão Científica Anual do American College of Cardiology, em abril de 2024.
A pesquisa avaliou o estímulo a sentimentos como perdão, gratidão, otimismo e propósito de vida, e qual a influência da intervenção na pressão arterial e na função endotelial.
O estudo analisou cem hipertensos, todos do Ambulatório da Unidade de Hipertensão da UFG (Universidade Federal de Goiás). Eles foram divididos em dois grupos, aleatoriamente: experimental (51) e controle (49).
No início, todos passaram por uma consulta médica. Hábitos de vida, uso de medicamentos, pressão arterial e dilatação mediada pelo fluxo foram avaliados. Os participantes também monitoraram a pressão por cinco dias no início e no final do estudo. Aqueles que apresentaram alterações de medicação durante o processo foram excluídos.
Durante 12 semanas, o grupo experimental recebeu mensagens diárias curtas e vídeos por Whatsapp para cultivar a espiritualidade —sem vínculo religioso. Foram incentivados a escrever mensagens de gratidão e a refletir sobre os quatro sentimentos.
Segundo a cardiologista Maria Emília Figueiredo Teixeira, autora principal do estudo, o resultado mostrou melhora da pressão arterial sistólica de consultório (a máxima), de 7.6 milímetros de mercúrio, da pressão sistólica central (aórtica)—a medida na aorta—, e da dilatação fluxo-mediada da artéria braquial, que é uma avaliação do endotélio (camada interna dos vasos sanguíneos).
“Esse é o melhor parâmetro para avaliar intervenções tal como usamos, de curto prazo e não medicamentosas. O resultado foi uma queda de uma boa magnitude da pressão arterial e que, se mantida a longo prazo, é capaz de evitar infarto, derrame e outras doenças cardiovasculares’, afirma a pesquisadora.
A metodologia do trabalho foi publicada nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, mas os resultados ainda não.
“É um estudo piloto, ainda inicial, que começa a nos ensinar como pesquisar esse tema. Acho que todos nós acreditamos no benefício desses bons sentimentos, mas precisamos comprovar. E para comprovar vamos precisar de estudos maiores. O Feel começa a lançar uma luz sobre esse tipo de possibilidade”, diz Teixeira.
Para Álvaro Avezum, professor do Programa de Doutorado da USP/Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, os dados são promissores e indicam uma direção a ser observada. A próxima etapa é um estudo de base nacional já em planejamento, para que a espiritualidade possa ser incorporada na prática clínica.
“Com esses dados eu já posso incorporar [a espiritualidade] na minha prática clínica para avaliar o paciente? Não, mas posso considerar. Qual o evento adverso disso? O efeito colateral? Não tem. Então eu posso, na minha anamnese, além de ver o consumo de sal, o padrão de sono, a atividade física e o tabagismo, perguntar: dentro da sua vida, há circunstâncias que você já teve alguma dificuldade de precisar perdoar, ou ficou incerto em relação ao propósito da sua existência?” Segundo o médico, a inclusão desses questionamentos na consulta não substituem a prescrição de medicação.
A Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) possui o Demca (Departamento de Espiritualidade e Medicina Cardiovascular). O assunto é levado a todos os congressos da especialidade.
Segundo Avezum, neste contexto, espiritualidade não significa religião, religiosidade ou misticismo. Deve ser entendida como um conjunto de valores morais, emocionais e mentais que norteiam o pensamento, como agimos e como reagimos às circunstâncias de vida, só que passível de mensuração.
“Nesse ambiente, você tem propósito e satisfação com a vida, disposição ao perdão, altruísmo, bem-estar espiritual, compaixão, raiva. Tudo isso que eu falei tem em questionários de avaliação. Eles mostram que pessoas com satisfação e propósito com a vida vivem mais. As que com solidão e isolamento social, morrem mais. Raiva aumenta diabetes e insuficiência cardíaca”, afirma Avezum.
Estudos semelhantes já foram feitos em alguns países. Para citar alguns exemplos, em 2015, no Japão, um grupo de pesquisadores avaliou a relação entre religiosidade e doença cardiovascular. O trabalho mostrou que religiosos eram mais propensos a ter hábitos de saúde favoráveis, bem como um melhor perfil metabólico cardiovascular. A religiosidade também foi menos associada ao diabetes.
Em outra pesquisa, realizada em 2020 e 2021 na Colômbia, em Hong Kong, na Indonésia, na África do Sul e na Ucrânia, comprovou que perdoar diminui os sintomas de ansiedade e depressão, e melhora a saúde mental.
A reportagem procurou a AMB (Associação Médica Brasileira) e o CFM (Conselho Federal de Medicina) para comentarem se a espiritualidade na prática da medicina será uma tendência no futuro.
Para Helena Carneiro Leão, 2ª secretária do CFM, a espiritualidade favorece a harmonia na relação médico-paciente e é importante na sua abordagem integral para entendê-lo melhor, o que não significa afastar a ciência.
“A espiritualidade não é religiosidade, mas algo maior, das questões pessoais, dos seus valores, princípios das suas crenças e da sua cultura. Só tem a acrescentar”, afirma Leão. A AMB não se manifestou.
* A repórter viajou a convite da Sociedade Brasileira de Cardiologia