Há um ano, os Estados Unidos retiraram suas tropas do Afeganistão em uma saída caótica que deixou dezenas de mortos e milhares de exilados.
Depois que o Talibã retomou o poder em agosto de 2021, o governo do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, decidiu congelar cerca de US$ 7 bilhões (mais de R$ 35 bi) em ativos que o banco central afegão tinha no Federal Reserve de Nova York (outros US$ 2 bilhões estão em outros países).
Isso representa mais de 40% das reservas em moeda forte do Afeganistão e inclui US$ 500 milhões em ativos de bancos privados que são obrigados por lei a serem depositados no banco central afegão.
O argumento da Casa Branca é que a liberação dos fundos possa levar o Talibã a desviar recursos ou não usá-los para melhorar a situação dos afegãos.
O confisco de reservas já foi praticado antes contra outros governos, instituições e indivíduos que Washington considera terem violado leis, praticado corrupção ou participado de ataques contra os direitos humanos.
Mas a crise que o Afeganistão experimentou no ano passado, uma das piores de sua história, levou vários especialistas e organizações a pedir a Biden que permitisse que o dinheiro do Afeganistão voltasse ao país.
Na semana passada, mais de 70 economistas e especialistas, incluindo o Prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz (2001), pediram a Washington e outros países ocidentais que liberassem os ativos para permitir que a economia afegã voltasse a funcionar.
“Estamos profundamente preocupados com as catástrofes econômicas e humanitárias que estão se agravando no Afeganistão e, em particular, com o papel da política dos EUA em promovê-las”, disse a carta, também assinada, entre outros, pelo ex-ministro das Finanças grego Yanis Varoufakis.
“Sem acesso às suas reservas estrangeiras, o banco central do Afeganistão não pode desempenhar suas funções normais e essenciais”, acrescentaram.
Os especialistas consideraram que a posição dos EUA só agrava a situação de crise que a nação islâmica vive desde o retorno do Talibã há um ano.
“O povo do Afeganistão teve que sofrer duplamente por um governo que não elegeu. Para mitigar a crise humanitária e colocar a economia afegã no caminho da recuperação, pedimos que você permita que o DAB [banco central afegão] recupere suas reservas internacionais”, disseram.
A economia do Afeganistão vive um dos piores momentos de sua história desde a volta ao poder do Talibã, uma situação que não está diretamente ligada à retenção dos fundos nos EUA.
O corte repentino da ajuda internacional (a ajuda externa direta financiava 70% do orçamento do governo afegão antes da chegada dos talibãs) e a inflação causada pela guerra na Ucrânia aprofundaram a situação de extrema pobreza no país, onde milhões de pessoas estão em risco de fome, segundo estimativas.
Nesse contexto, o país tem sido prejudicado pela incapacidade de funcionamento do seu banco central por não ter acesso às suas reservas.
Isso resultou em uma forte depreciação da moeda afegã (afegane), levando ao aumento dos preços das importações e ao colapso do sistema bancário, com milhares de pessoas impossibilitadas de acessar suas economias ou receber salários.
Longa cruzada
Há meses, Washington e o Talibã mantêm conversas para discutir a liberação das reservas, mas não encontraram um meio-termo.
O novo governo do Afeganistão não é reconhecido pela maioria da comunidade internacional, e grupos de direitos humanos acusaram o Talibã de abusos, incluindo execuções extrajudiciais e cerceamento das liberdades de mulheres e meninas.
O Talibã, por sua vez, prometeu investigar os supostos assassinatos e diz estar trabalhando para garantir os direitos dos afegãos à educação e à liberdade de expressão “dentro dos parâmetros da lei islâmica”.
Entre as soluções discutidas para acabar com o embargo das reservas está a criação de um mecanismo que incluiria um fundo fiduciário, cujos desembolsos seriam decididos com a ajuda de um conselho internacional.
Mas, embora o Talibã não rejeite o conceito de fundo fiduciário, se opõe à proposta de que seja controlado por terceiros.
E, por outro lado, os Estados Unidos se opuseram à nomeação pelo Talibã de uma pessoa alvo de sanções de Washington como vice-governador do banco central do Afeganistão, o que também tem dificultado o avanço das negociações.
11 de Setembro
E o problema vai além.
Esses ativos tornaram-se objeto de litígio, pois algumas vítimas americanas dos ataques de 11 de Setembro pediram que fossem usados para pagar indenização por sentenças pendentes contra o Talibã.
Desde que os EUA iniciaram sua cruzada contra o “terrorismo internacional”, permitiram que fundos de organizações, países ou indivíduos considerados “terroristas” fossem usados para indenizar vítimas ou suas famílias.
Há mais de uma década, um grupo de famílias do 11 de Setembro obteve uma sentença à revelia contra o Talibã por sua suposta colaboração com a Al Qaeda, o grupo extremista que realizou os ataques.
Depois que o Talibã retomou o poder no ano passado, um tribunal distrital federal dos EUA decidiu que, como os islâmicos agora controlavam o Afeganistão, os demandantes poderiam ir atrás dos ativos congelados.
A decisão foi altamente controversa porque os Estados Unidos não reconhecem o Talibã como o governante legítimo do Afeganistão —e o Afeganistão, como país, não foi nomeado como réu soberano no processo inicial.
Em fevereiro passado, o governo Biden apresentou um plano que transferiria cerca de metade dos ativos (cerca de US$ 3,5 bilhões) para terceiros, mas deixaria o restante nos EUA até que o litígio em andamento fosse concluído.
O processo e a decisão de Biden não foram isentos de controvérsias e questionamentos.
“O governo dos Estados Unidos está saqueando ativos que legalmente pertencem a outro governo para recompensar seus próprios cidadãos”, escreveu Daniel W. Drezner, professor de política internacional da Faculdade de Direito e Diplomacia da Universidade de Tufts, em uma coluna no jornal The Washington Post.
“Se outro país fizesse isso, seria visto como roubo total. E isso torna muito mais fácil para outras grandes potências agirem de maneira imperial semelhante”, acrescentou.
“A implicação de longo prazo é dar a outros países mais uma razão para se ressentir e temer que os EUA usem o dólar como arma. Porque não importa qual justificativa legal seja fornecida, o governo federal está roubando o dinheiro do Afeganistão”, concluiu.
Entre os que se opõem à devolução do dinheiro do banco central afegão estão os que lembram que grande parte dele vem da ajuda internacional dos EUA e de outros países ocidentais.
Este texto foi publicado originalmente aqui.