“Visionário” é uma palavra muitas vezes jogada ao vento. Uma ferramenta de marketing. Não é o caso com Jean-Luc Godard. Ao lançar “Acossado” em 1960, na alvorada da nouvelle vague, movimento artístico que redefiniu a linguagem do cinema, o cineasta estava enxergando o futuro.
O mundo se despede hoje de Godard, que morreu aos 91 anos. Sem desacelerar, o diretor franco suíço trabalhou incansavelmente até 2018, quando lançou o documentário “Imagem e Palavra”. Ao longo de sua carreira, ele foi um revolucionario e um inconformista. Um rebelde e um gênio.
É possível traçar tudo de volta até “Acossado”. O thriller com Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg rompeu padrões de linguagem e convenções de gênero. Em vez de buscar hermetismo artístico e o rigor da forma, Godard salpicou seu filme com referências a outros cineastas e gêneros, notadamente o cinema noir, tirou a câmera do tripé e rodou o longa como um documentário, uma reportagem de TV. Foi uma ruptura e um estouro.
Hollywood, claro, logo bateu em sua porta. A oferta era para fazer “Bonnie & Clyde” nos Estados Unidos. Godard deu de ombros, negando-se a abrir mão de seus princípios artísticos. Em vez disso, ele emendou em sua França natal uma sequência brilhante de trabalhos inovadores, que seguem inspirando gerações de cineastas.
Entre eles Quentin Tarantino, que batizou sua produtora, A Band Apart, como uma homenagem a “Bando à Parte”, de 1964. “O Desprezo” (com Brigitte Bardot), “O Demônio das Onze Horas” e o brilhante “Alphaville”, ficção científica premiada com o Urso de Ouro em Berlim, mostravam o talento de Godard em misturar conceitos estéticos sofisticados com um diálogo insuspeito com a massa.
Em outras palavras, ele traduziu em filme o sentimento que regia um recorte da população que enxergava as mudanças políticas e sociais no mundo e buscava uma válvula de escape para definir essa inquietação.
O próprio Godard passou a se enxergar não como essa voz em busca de som, mas como parte do problema. Ao final dos anos 1960, no entardecer da nouvelle vague, ele criou um cinema político, difícil de ser ignorado, inclinando-se à militância. Impressiona, por exemplo, como seu “A Chinesa” previu de forma quase sobrenatural as revoltas estudantis que assolaram a França em maio de 1968
Seu último trabalho nesse período foi o exuberante “Week-End à Francesa”, uma alegoria sobre o declínio da sociedade moderna que acompanha um casal parisiense que parte para o interior em busca de uma herança. A fileira interminável de carros engarrafados, um plano sequência de oito minutos, captura em filme a impotência da burguesia ao tentar escapar das fronteiras do mundo civilizado.
A década seguinte viu Jean-Luc Godard coo um cineasta recluso, produzindo seu próprio trabalho, não raro ao lado de ativistas políticos de esquerda. A essa altura, porém, seu legado já era de valor imensurável. As regras do cinema, os limites da narrativa, haviam sido expandidos de forma irrefreável.
Foi nesse cenário que o cineasta retomou nos anos 1980 o ofício de contar histórias de maneira, digamos, mais tradicional. “Salve-se Quem Puder (A Vida)” e “Paixão” traziam um diretor maduro, mas em busca de um novo caminho.
“Carmen” foi um triunfo que conquistou o Leão de Ouro em Veneza em 1983, mas o prêmio parecia um afago pelo conjunto da obra. “Eu Vos Saúdo Maria” é lembrado mais notadamente pela polêmica que levantou do que por seus méritos artísticos.
O maior legado que Jean-Luc Godard deixa para o cinema é mostrar que a fórmula para fazer filmes é justamente não seguir uma fórmula. Mostrar que existe valor em experimentar, em criar, em desconstruir. Em olhar para o cinema como uma folha em branco, na qual cabe qualquer coisa.
No novo século o cineasta seguia curioso, experimentando as novas ferramentas que alteravam a forma de fazer filmes e nossa percepção acerca deles. “Adeus à Linguagem”, lançado em 3D em 2014, mostrou que ele era não só um mestre ainda inovador, mas também um aluno que nunca deixou de olhar para o futuro. Um visionário.