Propostas audaciosas, mesmo que requeiram estudos, articulação política e tempo para serem viabilizadas, precisam estar incluídas em programas de governo que apontem para um futuro promissor, superando problemas diagnosticados e universalizando direitos que beneficiam poucos. Inovação, criatividade e um pouco de utopia são necessários se não quisermos ficar no mesmo.
Não se avançará em políticas públicas fazendo feijão com arroz, repetindo fórmulas e programas antigos, superados ou insuficientes. Como tem ocorrido no estado de São Paulo durante os 28 anos em que foi governado pelo PSDB, salvo honrosas exceções, por exemplo o Poupatempo e as Etecs.
Editorial da Folha (Projeto e realidade, de 21/9) critica a ambição do programa de governo de Fernando Haddad para o estado de São Paulo e questiona propostas apresentadas basicamente em dois aspectos: por propor “ações que, em seu tempo de prefeito, não progrediram a contento”, como corredores de ônibus, CEUs e o Braços Abertos, e por fazer propostas ambiciosas, como o bilhete único metropolitano.
A interpretação de que ações da gestão Haddad (2013-2016) não progrediram não corresponde à realidade. Não completar inteiramente uma proposta, em quatro anos, não significa que ela não progrediu. Política pública bem-feita, sem improvisação, requer tempo de planejamento, projeto, teste, reavaliação e aperfeiçoamento. Sem lançar desafios, estudar alternativas e começar a colocá-las em prática não se chega a bons resultados.
Corredores de ônibus foram planejados e incluídos no Plano Diretor, cujo prazo de execução é até 2029. Não foram integralmente implementados até 2016 devido ao ajuste fiscal federal e da queda de 7% da arrecadação municipal, provocadas pela recessão 2015-6.
Mas eles estão projetados e podem ser implantados pela prefeitura, que se beneficiou da redução da dívida municipal (de R$ 72 bi para R$ 27 bi), negociada por Haddad, que ampliou a capacidade de investimento e de endividamento da prefeitura.
A prioridade ao transporte coletivo proposta foi garantida pela criação de 450 km de faixas exclusivas de ônibus, solução excelente a baixíssimo custo. Adaptar a proposta para um contexto imprevisto, obtendo resultados significativos, é um mérito da gestão.
O mesmo ocorre em relação aos 20 CEUs propostos. Apenas um foi inaugurado, mas em 2016 outras 16 unidades estavam projetadas e 12 em obras, em um modelo aperfeiçoado, chamado Territórios CEUs, que implementou o conceito de Cidade Educadora, defendido pelo saudoso Gilberto Dimenstein. Paralisados por Doria, 12 CEUs foram inaugurados por Bruno Covas.
Como dizer que não progrediram? Repensar uma proposta educacional bem-sucedida, em âmbito estadual, é uma necessidade e pode ser implementada gradativamente até chegar em todo o estado.
Já o programa Braços Abertos, voltado para dependentes químicos, o próprio editorial esclarece que 2/3 dos atendidos reduziram o consumo de drogas, mas critica a solução habitacional (hotéis na região) utilizada à época para acolhê-los. É exatamente isso que o programa de Haddad propõe aperfeiçoar, com a criação do Serviço Social da Moradia para a população em situação de rua.
O Braços Abertos, programa inovador e de difícil implementação, requer aperfeiçoamentos, mas precisa ser retomado, desde que supere problemas identificados. Sua paralisação na gestão Doria e sucessores resultou em um fracasso, com o atual espalhamento de mini cracolândias em todo o centro e outras regiões.
Já o Bilhete Único Metropolitano é uma necessidade da população que vive nos 39 municípios, que hoje é obrigada a utilizar diferentes tipos de cartões e a pagar altíssimas tarifas de transporte coletivo para se deslocar entre municípios que são integrados do ponto de vista econômico, urbano e físico.
Enfrentar o problema é urgente, como era em São Paulo nos anos 1990, quando pela primeira vez, na campanha de 1996, Erundina propôs o bilhete único municipal.
Marta, oito anos depois, enfrentando empresas de ônibus, vans clandestinas e dificuldades tecnológicas e financeiras, implantou um bem-sucedido modelo de bilhetagem, que beneficia milhões de paulistanos.
Qual o problema de se propor a criação de um bilhete metropolitano, integrando o sistema de transporte coletivo de uma região de 22 milhões de habitantes que é economicamente interdependente?
Pode ser ambiciosa, mas é necessária e viável, podendo ser implementada gradativamente. O desafio tecnológico inexiste. A necessária articulação política para conseguir a adesão dos 39 municípios se insere na premência de criar instâncias de planejamento integrado metropolitano, destruída pela gestão Doria-Rodrigo.
Os aspectos econômicos podem ser equacionados com estudos que racionalizem as linhas, articulando as municipais, as metropolitanas, os trens e o metrô para, com os menores custos, obter os melhores resultados. Isso é necessário para enfrentar a crise de financiamento do sistema de transporte coletivo. Não é simples, mas indispensável.
O que não tem sentido é um cidadão de Diadema pagar duas ou três passagens para chegar a um bairro em São Paulo, pagando o dobro ou o triplo que um paulistano gasta para percorrer igual distância. Alguém precisa ter a ousadia de mudar isso.
Ao contrário do programa de governo de Tarcísio de Freitas, superficial e genérico, com apenas 12 páginas, e o de Rodrigo Garcia, que reproduz o que já vem sendo feito (e desfeito) no estado, com 44 páginas, o programa de Haddad, com 144 páginas, é abrangente e inovador.
Muitas das 601 propostas por ele apresentadas requererem estudos, planejamento e reavaliações, mas sua explicitação e detalhamento permite ao eleitor identificar e analisar o que o governador pretende fazer, não apenas em quatro anos, mas como horizonte de transformação do estado a médio e longo prazo.
O programa propõe uma estratégia para enfrentar o desafio do século: a emergência climática. Não só com ações diretamente vinculadas à política ambiental estrito senso, mas com propostas transversais que alcançam todas as áreas de gestão.
Em direção a um desenvolvimento econômico sustentável, propõe uma reindustrialização verde, impulsionando e acelerando a eletrificação da frota de veículos para promover uma transição energética na mobilidade, o estímulo à agroecologia no rural e uma descarbonização acelerada do estado.
O programa propõe ir além do desmatamento zero (uma necessidade nacional), apontando para um superávit verde no estado, com o reflorestamento de áreas degradadas, como o Vale do Paraíba, e de Áreas de Proteção Permanente (APPs), indispensáveis para a recuperação dos cursos d’água e para a segurança hídrica.
Não se enfrentará a mudança climática com “feijão com arroz”. Essas e outras propostas são ousadas, mas precisam ser planejadas e equacionadas para, a médio prazo, virarem realidade.
Quem sabe, com a possível vitória de Lula em 2 de outubro, o debate eleitoral do 2º turno em São Paulo possa ser tornar mais consistente e sério e, assim, dar mais protagonismo a uma análise mais aprofundada dos programas de governo.
Afinal, governantes são eleitos para implantar políticas públicas que apontem um futuro para o estado e para o país.